Por Raquel Azevedo *
Há filmes que não se limitam a narrar — ferem, queimam, lembram. Sem Amarras [Ni chaînes ni maîtres], de Simon Moutaïrou, é um desses gestos de fogo. Um cinema que não procura a contemplação, mas o incômodo. Um filme que se ergue das cinzas da História para murmurar o que a História quis silenciar. Estamos em 1759. O sol atravessa os campos de cana nas Ilhas Maurícias, então colónia francesa. A luz é bela, quase sagrada — e no entanto, tudo o que ela ilumina é dor. A câmara de Moutaïrou acompanha Massamba e Mati, pai e filha, ambos escravizados. A jovem sonha com fuga; o pai, com sobrevivência. A cada respiração deles, o mundo parece desabar um pouco mais. Mati corre. E ao correr, transforma-se em símbolo — a filha que desobedece, a mulher que não aceita o destino traçado. A sua fuga desencadeia uma perseguição feroz, conduzida por Madame La Victoire, caçadora de escravos.

É através dessa caçada que o filme se revela como metáfora: entre o corpo que corre e o sistema que o persegue, desenha-se a coreografia da liberdade impossível. O realizador, de ascendência beninense e francesa, filma com o peso de quem carrega memórias herdadas. A sua câmara não é neutra: respira como se também tivesse cicatrizes. Há algo profundamente físico neste cinema — o suor na pele, a poeira que se infiltra, o sangue que se mistura à terra. Cada imagem é um eco de violência, e ao mesmo tempo, um gesto de sobrevivência.
Nas Maurícias, Moutaïrou encontra um espaço que é também ausência: uma geografia da dor sem monumentos, onde o oceano murmura as travessias forçadas e as canas-de-açúcar sussurram nomes apagados. O realizador devolve-nos esse silêncio, transformando-o em paisagem. O que vemos não é apenas história — é ferida. Há uma beleza estranha em Sem Amarras: uma beleza que não consola, mas revela. Os enquadramentos são duros, quase ascéticos. O som — o vento, o chicote, o grito distante — é tão importante quanto a imagem. Moutaïrou parece filmar a própria respiração da terra. E o espectador, ao assistir, sente o peso do tempo, o rumor dos séculos que ainda não cessaram.

No coração do filme, há uma pergunta sem resposta: o que é a liberdade? Mati corre, Massamba hesita, Madame La Victoire caça — e nenhum deles é verdadeiramente livre. Porque a escravatura, no olhar do realizador, não termina com a fuga, mas prolonga-se nas estruturas que moldam os corpos e os sonhos. As amarras podem ser quebradas, mas continuam a apertar na memória, na linguagem, na cor da pele. O título — Sem Amarras — é uma ironia luminosa e triste. A promessa de libertação é também o lembrete do seu preço. Há algo de trágico e de belo na persistência dos que ainda acreditam, mesmo sabendo que o mundo foi feito para os deter.

Moutaïrou não oferece redenção. Oferece espelhos. O seu cinema é uma convocação à escuta: do passado, do presente, de nós mesmos. Ao final, quando o ecrã escurece, ficamos a pensar que talvez a verdadeira prisão não esteja nas correntes de ferro, mas nas formas subtis de esquecimento que nos habitam. Sem Amarras é um filme que pulsa. Um cinema de carne e vento, de sombra e de mar. Um gesto de resistência feito imagem — e um lembrete de que há memórias que não se apagam, porque continuam a correr, incansáveis, dentro de nós.

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