João César Monteiro: A obsessão da liberdade e o cinema como desobediência
Poucos cineastas portugueses têm uma obra tão singular, tão inquietante e tão radical quanto João César Monteiro. Figura central do cinema moderno em Portugal, Monteiro criou um universo inteiro feito de ironia, provocação, ascetismo, erotismo, misantropia e riso demoníaco. A sua filmografia é, simultaneamente, herdeira do modernismo cinematográfico europeu e totalmente indomável perante qualquer tradição ou pertença. O que Monteiro constrói não é um estilo; é uma ética. O seu cinema é um gesto de insubmissão.

Este artigo percorre os temas estruturantes da sua obra, a evolução estética, os conflitos com instituições e expectativas sociais, a construção da persona João de Deus e o papel de Monteiro como corpo político dentro do cinema português e europeu.
Uma figura contra o seu tempo
João César Monteiro nasce em 1939, cresce sob o Estado Novo e estreia-se como cineasta num país ainda marcado pela censura e pelo atraso cultural. A sua formação cinéfila — marcada pelo contacto com o neorrealismo italiano, a Nouvelle Vague francesa e o cinema americano clássico — convive com uma personalidade disciplinada pela rebeldia. Monteiro sempre recusou integrar-se em escolas, movimentos ou ideologias fechadas, embora dialogasse constantemente com eles.
Nos anos 1970, enquanto o cinema português pós-Revolução se aproxima de impulsos coletivos, políticos e emancipatórios, Monteiro surge como um corpo estranho. Não porque não partilhasse de preocupações políticas, mas porque recusava a ideia de que a arte fosse um instrumento direto de mobilização. Para ele, a verdadeira revolução era individual, feita no campo da linguagem e do comportamento: a revolução da liberdade interior.
O corpo como campo de batalha
A obra de Monteiro parte muitas vezes do corpo: frágil, envelhecido, cômico, grotesco, sensual, solitário. Este corpo é, simultaneamente, símbolo e instrumento. Para Monteiro, o corpo é um lugar de resistência — contra a moralidade burguesa, contra a ordem, contra o funcionamento das instituições, contra o cinema normativo.

Já em Veredas (1978), a figura do errante, do outsider que se desloca sem lugar definido, marca o início de um programa estético. A personagem mergulha num universo mítico onde o corpo é ora ascético, ora sagrado, ora marginal.
Mais tarde, com a criação do alter ego João de Deus, Monteiro encarna no ecrã um corpo que é simultaneamente clown e filósofo, santo e devasso, vagabundo e inquisidor, criança e velho, herói e parasita.
O humor como forma suprema de inteligência
Um dos aspetos mais fascinantes do cinema de Monteiro é o humor. Mas não se trata de um humor leve; é um humor corrosivo, cruel, desconfortável. É humor como método filosófico. Monteiro acreditava que a comédia, quando verdadeira, revelava muito mais sobre o mundo do que o drama convencional.
O erotismo é uma constante, mas nunca aparece como mera provocação. Para Monteiro, o erotismo é uma força vital, uma afirmação da liberdade contra a moral opressiva.
A estética de Monteiro é radicalmente minimalista. Ele trabalha com planos fixos prolongados, composições rigorosas, decupagem austera e um ritmo que recusa a aceleração contemporânea.
O conflito com instituições

Monteiro não foi apenas cineasta: foi um caso de insubordinação cultural. Confrontou instituições, organismos financiadores, comissões de censura, televisão pública e até o público.
A construção de João de Deus é um dos mais brilhantes exercícios de autoficção cinematográfica. O cinema como ética e desobediência. Para Monteiro, o cinema era uma forma de vida moral.
Apesar do humor e do caos aparente, a obra de Monteiro tem um coração profundamente melancólico. João César Monteiro morreu em 2003, deixando uma obra que continua a dividir, provocar e fascinar. A obra como gesto de insurreição: João César Monteiro fez do cinema um ato de desobediência poética.

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