Cinema na Casa: a primeira noite

Na Casa da Pertença, o silêncio antes da projeção parecia guardar algo maior do que um simples começo. As cadeiras dispostas no espaço exterior, os passos que chegavam um a um, o murmúrio das conversas em muitas vozes: tudo anunciava a promessa de um espaço que se queria  íntimo e  coletivo ao mesmo tempo.

Quando as luzes se apagaram e a tela se iluminou com Manga d’Terra, de Basil da Cunha, iniciou-se não apenas uma sessão de cinema, mas um gesto inaugural, uma fundação simbólica. A casa encheu-se. Gente de várias idades, origens e caminhos reuniu-se ali, como se o filme fosse apenas o pretexto para algo mais profundo: o encontro.

O filme, que traz Cabo Verde como cenário e memória, fala de raízes e deslocamentos, de terra e mar, de pertença e ausência. Cada plano parecia ressoar com a essência da própria Casa Pertença, este lugar nasceu para acolher coletivos, projetos e associações, e que agora também acolhe o cinema como uma forma de escuta partilhada.

Depois dos créditos, não houve pressa em sair. O público permaneceu, como se o filme continuasse a reverberar dentro das conversas. Houve palavras trocadas, silêncios cúmplices. E foi nesse intervalo, no depois, que se percebeu o verdadeiro sentido do espaço: não apenas projetar imagens, mas criar comunidade através delas.

O Espaço Cinema na Casa nasceu assim, com uma noite em que a arte se tornou ritual. Não é uma sala comercial, nem quer ser. É antes uma sala de proximidade, onde cada sessão pode transformar-se em assembleia afetiva, onde o cinema volta ao seu lugar de origem: o de juntar pessoas, o de criar laços invisíveis entre desconhecidos.

Casa Pertença sempre foi mais do que paredes e telhado. É um organismo vivo, tecido de vozes, de projetos, de gestos solidários. Agora, ao acolher o cinema, abre uma nova janela, um horizonte em movimento que atravessa fronteiras e traz mundos para dentro do bairro.

A primeira noite foi prova disso. Uma multidão reunida, um filme que fala de terra e pertença, e uma casa que se confirma no seu nome. Cinema na Casa é mais do que programação: é promessa. A promessa de muitas outras noites cheias, de encontros inesperados, de histórias que ecoam muito depois da projeção.

Porque, no fundo, o que se fundou ali foi uma certeza: o cinema, quando partilhado, é sempre também uma forma de comunidade. 

About the Author

Raquel Azevedo
* Raquel Azevedo é técnica multimédia, produtora, activista sindical e cinéfila.

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