Por Raquel Azevedo *
Há filmes que nos chegam como uma estação. A Chegada do Outono (Quand vient l’automne, 2024), de François Ozon, é um desses raros momentos em que o cinema parece respirar o tempo — o tempo da velhice, da memória e da culpa. Depois de obras intensas como Tout s’est bien passé e Peter von Kant, Ozon regressa a um registo mais íntimo e contido, filmando com uma serenidade enganadora o que talvez seja o seu filme mais silenciosamente cruel.

A protagonista é Michelle, interpretada magistralmente por Hélène Vincent, uma mulher reformada que vive sozinha numa aldeia da Borgonha. As suas rotinas são pequenas liturgias: colher cogumelos, cuidar do jardim, conversar com a amiga Marie-Claude (Josiane Balasko). A natureza é cúmplice e espelho — a vegetação cobre as casas, o vento anuncia o outono, e tudo parece repousar num equilíbrio precário entre a vida e o desaparecimento. Ozon filma estes gestos com paciência, como se o cinema pudesse escutar o envelhecer do mundo. Mas a serenidade inicial esconde tensões subterrâneas. A filha de Michelle, Valérie (Ludivine Sagnier), regressa para deixar o filho Lucas com a avó. Pouco depois, um almoço inocente transforma-se num evento perturbador: Valérie é hospitalizada após comer cogumelos preparados por Michelle. O que parecia acidente revela-se o gatilho de segredos familiares, ressentimentos antigos e uma culpa difusa que paira entre as gerações.
O filme transforma-se, então, de crónica doméstica em thriller psicológico, sem perder a delicadeza da observação humana. Ozon utiliza a natureza como metáfora do declínio e da renovação. O outono, com as suas cores quentes e folhas em queda, é mais do que cenário — é o estado de espírito da narrativa. A estação marca o fim de um ciclo, mas também o prenúncio de um novo. É no apodrecer da terra que germina a possibilidade de reconciliação, mesmo que tardia.
O filme é, assim, sobre o tempo que passa e o peso que deixamos para trás, sobre o que se esconde nas relações maternas e na própria ideia de envelhecer. Há um refinado equilíbrio entre ternura e ironia, típico do cinema de Ozon. O humor é discreto, quase cruel; o olhar, profundamente humano. Michelle é retratada não como vítima, mas como mulher complexa — feita de amargura, compaixão e desejo de libertação. Em tempos de juventude forçada e narrativas de sucesso, Ozon devolve à velhice a sua dignidade e ambiguidade. O corpo envelhecido é aqui portador de história, não de vergonha.
A fotografia, assinada por Manuel Dacosse, reforça essa sensorialidade. As tonalidades douradas e ocres criam uma atmosfera melancólica, onde a luz parece sempre prestes a desaparecer. O som da floresta, o rumor das folhas e o silêncio dos espaços domésticos tornam-se linguagem. A música dos irmãos Galperine complementa essa delicadeza com notas quase imperceptíveis, sugerindo mais do que afirma.

Se A Chegada do Outono é um filme sobre o fim, é também sobre aquilo que resiste. As relações femininas — entre amigas, entre mãe e filha — emergem como redes frágeis, mas essenciais. Marie-Claude e Michelle partilham silêncios, cumplicidades e culpas, num retrato comovente da amizade envelhecida. O filme evita o sentimentalismo fácil: o afeto existe, mas nunca sem o peso do passado. No fundo, Ozon propõe um olhar sobre a passagem do tempo que é também político. Numa sociedade que marginaliza os corpos velhos e o interior rural, A Chegada do Outono devolve visibilidade a quem é esquecido. A aldeia, o jardim, as casas gastas, tornam-se lugares de resistência e de memória. Há ecos de Chantal Akerman e de Agnès Varda — o olhar amoroso, o detalhe quotidiano, a mulher que permanece.
Ao chegar ao fim, o espectador é deixado num silêncio semelhante ao do início. Nada de grandioso acontece, e, no entanto, tudo mudou. A estação vira página, as folhas caem, e a vida segue o seu curso imperfeito. A Chegada do Outono é um filme sobre o intervalo entre o arrependimento e a aceitação, sobre o amor que sobrevive ao tempo e sobre o cinema como gesto de escuta. No outono, diz Ozon, não se trata apenas de ver as folhas cair — trata-se de aprender a deixá-las ir.

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