Por Alfredo Soares-Ferreira *
Não deixamos de ficar perplexos perante mais uma mudança na hora. Duas vezes por ano, um cenário patético de alteração artificial da natureza, ostentam a permanência de medidas administrativas de um organismo centralizador, entretanto sistematicamente desacreditado perante a sucessão de acontecimentos. Falamos, da dita “comissão europeia”, completamente afastada da realidade, dos países que a compõem, unicamente determinada em exercer Poder em tudo e em todos os lugares e sectores. Faltava controlar o Tempo e, como tal, inventou no ano 2001 a mudança de hora, em todo o território onde pensa exercer direito e propriedade. Diga-se entretanto, que o controle do espaço e do tempo são decisivos para o controle completo dos cidadãos e que tal empenho é constantemente utilizado, quer nas suas formas primitivas, quer nas mais elaboradas. É o controle psicológico porventura o mais decretório, porque é decisivo e definitivo na sua essência. Se, ao menos, contivera alguma “lógica” interna, como por exemplo, uma eventual poupança de energia, tal argumento cai pela base, nos tempos que correm. Na verdade, a própria avaliação de impacto da dita “comissão” concluiu que as poupanças de energia, outrora a principal razão, são hoje marginais; por exemplo, a evolução tecnológica, em termos de iluminação e electrodomésticos eficientes, determina a ineficácia da medida. Também os analistas de logística e transportes a contestam, considerando que a perturbação causada pelas mudanças horárias obriga a ajustes complexos em horários de voos, sistemas informáticos e transacções, criando ineficiências e custos acrescidos.

Sustento que a mudança da hora não passa hoje de um ritual ridículo, uma espécie de sussurro melancólico de um continente que perdeu o compasso. Um tempo que perdeu o modo, encapsulado em invólucros de pensamento limitado. A mudança horária é, de facto, um tema que vai muito além da mera administração e tem sido alvo de críticas consistentes por parte de académicos, cientistas e políticos, que veem nela precisamente um desprezo pelos ritmos naturais e pelo bem-estar das pessoas. Recorrendo aos estudos da cronobiologia, ciência que estuda os ritmos biológicos dos seres vivos, ficamos a saber um pouco mais como se processa a adaptação aos ciclos do ambiente. O cronobiólogo alemão Till Roenneberg, especialista no estudo do sono e dos ritmos circadianos, é Autor da obra “Internal Time” (Tempo Interno), onde discute a importância da saúde do sono para a saúde e bem-estar geral, procurando demonstrar que a mudança de hora vai forçar um fenómeno conhecido como dissincronose, um desajuste entre o relógio biológico do corpo e os horários impostos pelo estilo de vida, uma espécie de jet lag social. Ao contrário do jet lag de viagem, que é temporário, o jet lag social é uma condição permanente para a maioria dos cidadãos que vivem em ambientes fechados com luz artificial e têm horários rígidos. Roenneberg argumentou que viver em constante desalinhamento com o sol tem impactos profundos na saúde, no sono e no desempenho pessoal e profissional. Com as mesmas preocupações, o professor britânico de neurociência circadiana Russell Foster, criou um grupo de investigação sobre as células ganglionares da retina fotossensíveis, responsáveis pela informação ao sistema do ritmo circadiano. Foster destaca, em particular, os perigos da privação de sono aguda que se segue à mudança para o horário de verão, e que se processam em picos em acidentes de viação e ataques cardíacos nos dias seguintes ao adiantamento dos relógios, devido à perturbação abrupta no ciclo de sono. Também a Academia Americana de Medicina do Sono dos Estados Unidos, fundada em 1975, publicou uma posição oficial em 2020 a defender a abolição da mudança de hora sazonal em favor de um horário fixo durante todo o ano, baseando-se em extensas evidências dos riscos para a saúde cardiovascular, metabólica e mental.
O ensaísta e poeta mexicano Octavio Paz considera o tempo como trágico, embora poético, tal como algo que dança em círculos, como o sol asteca, sem encontrar um “modo”, um jeito de dar sentido à existência. Paz escreve, na sua obra de 1987 “Árbol Adentro” (“Árvore Dentro”), : “O instante se dissolve / na corrente do tempo / que não vai a nenhum lugar…”, quase um símbolo de uma sociedade que manipula o tempo, mas não o compreende. Numa outra dimensão artística, o romancista e ensaísta alemão Thomas Mann, um dos grandes cronistas da decadência europeia, explora o tempo como um tecido que se desfaz na modernidade. Mann retrata o tempo como um fluxo doentio, sem direcção ou harmonia, onde a civilização parece perder o seu “modo”, ou a sua capacidade de criar sentido. A sua obra-prima de 1924, “A Montanha Mágica”, é uma meditação sobre o tempo sem modo. No sanatório de Davos, o protagonista Hans Castorp entra num mundo onde o tempo se dilui: dias, meses e anos tornam-se indistintos, e as rotinas do sanatório, como ajustar relógios para refeições ou repouso, são rituais vazios que parodiam a ordem europeia. Para os dois Autores, a abordagem da questão “o tempo sem modo” surge como sintoma de uma crise maior: para Paz, é a perda da conexão poética com o mundo; para Mann, é o colapso da ordem cultural europeia. Enquanto Paz busca um “modo” na transcendência lírica, Mann tenta perscrutar a análise crítica da decadência, mas ambos convergem na ideia de que o tempo, sem um ritmo humano, torna-se um vazio. O poeta, dramaturgo e crítico literário norte-americano T. S. Eliot, capturou no epicentro do modernismo, um tempo sem modo, como uma paisagem árida e fragmentada, em “The Waste Land” (“A Terra Devastada”) , de 1922, que tem como sub-título, “Um Poema da Memória e do Desejo“. O tempo aqui é uma colagem de mitos antigos entrelaçados com o presente estéril, sem ritmo coeso. A Europa do pós-guerra é um deserto temporal, com relógios que tiquetaqueiam em vão. Eliot, influenciado por Baudelaire, usa alusões e vozes múltiplas para mostrar um continente sem horizontes, ecoando a mudança de hora como um ritual vazio e, para além disso, uma medida nociva, obsoleta e irracional.
O tempo parece não estar definitivamente do nosso lado, ao contrário do que acontece no poema “Time Is On My Side“, dos anos sessenta do jazzista norte-americano Jimmy Norman, popularizado na versão estonteante dos Rolling Stones. O tempo está hoje desgraçadamente nas mãos dos burocratas, um pouco por todo o lado. Também, como se procurou mostrar, não tem modo. O grito de pensamento e acção associado à revista “O Tempo e o Modo”, também dos anos sessenta, transforma-se hoje em resignação, que aponta um tempo que não tem modo.
A dimensão normativa do tempo impõe um kronos (cronos), o dito tempo que não tem modo. Não sendo o tempo apenas uma experiência individual, mas sim uma estrutura de poder, determina, de certa forma, uma “tirania da aceleração”, teorizada pelo sociólogo alemão Hartmut Rosa: a norma é ser rápido, conectado e ágil. Qualquer busca pela “desconexão” é um acto político de resistência, que propõe uma nova norma: a da lentidão deliberada, da reflexão e da presença. O nosso tempo para ter modo, deverá ser este.

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