Por Alfredo Soares-Ferreira *
A harmonia universal da paz na era romana, configurava um conceito geopolítico específico. A designada pax romana considerava Roma como a potência incontestável e a paz pela supremacia era a que surgia após a conquista e subjugação de todos os rivais. A ordem imposta consistia num sistema legal, uma infraestrutura (estradas, vias e comunicações, …), uma moeda e uma língua comuns. A consequente estandardização facilitava o comércio e a administração, criando prosperidade dentro das fronteiras do Império. Também o era na esfera pública e cultural: mesmo sem impor à força a cultura romana, o sistema emergente iria criar vantagens e atracções para as elites locais, promovendo a designada “romanização“, entendida a integração. A paz de Roma tinha sempre latente a violência, qualquer revolta ou desafio ao poder era esmagado de forma rápida e exemplar, como a destruição de Jerusalém em 70 d.C., no final da Primeira Guerra Judaico-Romana. O lema da pax romana era, qualquer coisa como: “Há paz quando todos aceitam as nossas regras, e a legião está à espreita para o garantir.” Quem estudou, escreveu e de certa forma teorizou sobre o império romano foi o historiador inglês Edward Gibbon. Publica uma obra única em seis volumes, entre 1776 e 1788, “The History of the Decline and Fall of the Roman Empire” (“A História do Declínio e Queda do Império Romano”), tida como a primeira obra “moderna” de história. Nela, Gibbon contraria frontalmente o desígnio divino e aborda os acontecimentos históricos à luz da explicação lógica, em termos sociais, culturais e políticos, o que não era muito usual à época. Para Gibbon, a pax romana era já um misto de propaganda e repressão. Usando ironia e mesmo sarcasmo, Gibbon caracterizou a época dos que designou imperadores “bons” (Trajano, Adriano, Antoninos), que na verdade não passavam de tiranos e déspotas “esclarecidos” que mantinham a ilusão de liberdade, através de leis adequadas e boas maneiras. Mas quando os imperadores deixaram de ser “bons”, a partir de 180 d.C., o sistema ruiu, provando que a “paz” dependia da qualidade moral do tirano e não das instituições. Esta forma de interpretar o domínio imperial encaixa perfeitamente na actualidade, pelo menos, no que reporta à moderna geopolítica.

Uma outra pax, a britânica, caracterizou-se pelo domínio comercial. Londres sempre evitou alianças permanentes até finais do século XIX. Só entrava em guerra quando o equilíbrio europeu era ameaçado ou quando os seus interesses comerciais estavam em jogo. Contudo, quando a Grã-Bretanha, que pregava o livre-comércio no século XIX porque era a oficina do mundo, começou a perder competitividade (1870–1900), adoptou o modelo de tarifas proteccionistas dentro do Império e acordos bilaterais. Ou seja, livre-comércio, desde que tal fosse conveniente ao império. A pax britânica que estava garantida, porque a Royal Navy metia respeito, acabou no momento em que a Grã-Bretanha não a conseguiu sustentar sozinha e teve que pedir ajuda aos EUA, o que aconteceria entre 1917 e 1941. A obra de Lenin, de 1917, “O Imperialismo, Estádio Superior do Capitalismo”, aborda e explica a pax britânica como a fase monopolista e financeira do capitalismo que torna inevitáveis as guerras imperialistas.
A apreciação das pax faz muito sentido num momento em que se instalou a ideia preserva da paz de Trump, bem como da expansão da mesma, através da imposição de regras, contratos e outras “recomendações”. Ao mesmo tempo que faz passar a ideia falaciosa do tráfico de droga na Venezuela, para intimidar Caracas, Trump e a sua administração tentam “instalar” a pax trumpiana em Gaza e na Ucrânia. Na acepção trumpiana, de lógica belicista, todas as vozes discordantes são de opositores que defendem interesses inconfessáveis. Acima de toda a análise pontual de guerras, conflitos e disputas territoriais, deve colocar-se uma questão, que é central e que considera que o capitalismo precisa de guerras ou de novos territórios para saquear, quando a acumulação interna fica bloqueada. Quem o demonstra é Vijay Prashad, autor e comentador político norte-americano, nascido na Índia, mostrando ao mundo os golpes e intervenções norte-americanas desde 1945 para manter a paz do Império, o único que sobrevive teimosamente. A sua obra “Washington Bullets: A History of the CIA, Coups, and Assassinations” (“Balas de Washington: Uma história da CIA, golpes de Estado e assassinatos”), de 2020 é um repositório de opressão e violência e de um colonialismo tardio, mas altamente eficiente nos seus propósitos. Prefaciada por Evo Morales, presidente da Bolívia, de 2006 a 2019, a obra serve (pelo menos) de aviso para as tropelias trumpistas e para as suas terríveis consequências, em todo o mundo. Porque, acima de tudo, há um império a defender. Mas não só, há um império ainda a expandir. Não deixa de ser irónico que o primeiro impulsionador do sionismo, o principal instigador e financiador do genocídio em Gaza, se apresente como “defensor” da paz. Não ficando apenas pelas intenções, Trump propõe um plano de paz que não é mais que o incentivo à capitulação dos palestinianos e à continuação da dominação israelita.
O candidato a novo Imperador da era moderna será, muito provavelmente também, o candidato a Nobel da Paz. Está ainda fresca a última nomeação dos velhos burgueses suecos a uma defensora da guerra e da invasão do seu próprio país pelos norte-americanos, mostrando bem a que nível de descaramento chegou a “diplomacia” europeia, um delírio proto-fascista dos admiradores, seguidores e vassalos de Trump. Sim, eles existem e circulam perto de nós, filmando-nos com um sorriso nas câmaras e um cassetete escondido, nesta europa do ridículo e da capitulação ao Império. Estão presentes nas assembleias da democracia burguesa, fazendo nelas o que não podem fazer na rua. É a pax trumpiana, no seu apogeu.
“O Mestre Sun disse: (…) há estradas para não percorrer, há exércitos para não atacar, há cidades para não cercar, há terrenos para não reclamar, há ordens soberanas para não obedecer”, sábias palavras de Sun Tzu, na “Arte da Guerra”. É provavelmente uma das mais profundas e revolucionárias sentenças da obra do Mestre. O grande ensinamento é, na verdade, que a verdadeira estratégia está em saber o que evitar, e que a obediência cega e a acção indiscriminada levam à derrota. Estando a pax trumpiana vocacionada para a exaltação pessoal de um tirano, preguiçoso e inculto, a sua verdadeira motivação substantiva é de “desprezo por integridade institucional em favor de poder pessoal”, como é sublinhado no artigo “Trump’s Machiavellian Ideology: The Politics of Power Over Morality” (“A ideologia maquiavélica de Trump: a política do poder acima da moralidade”), publicado em Dezembro de 2024, no Substack. Este artigo reporta alguma aproximação a Maquiavel, na perspectiva (reducionista) do poder como um fim em si mesmo, descartando considerações morais, aquilo que no Autor florentino se poderia chamar um pragmatismo amoral.
A atenção devida às diatribes trumpianas não deve fazer esquecer a diferença abissal entre o que é genocídio de Gaza e a Guerra à Leste. Ou a provocação feita à Venezuela, que foge à pax, na medida em que as diversas administrações norte-americanas, sem excepção, nunca aceitaram as transformações profundas na América Latina desde meados do século XX e ainda porque se trata do maior armazém de petróleo do mundo.
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Nota aos leitores: farei uma pausa, para descansar e viajar, até finais de Fevereiro 2026, que será utilizada também para iniciar um novo projecto (um programa de rádio) e para a escrita de um novo livro; e sempre, para ler, estudar e investigar.
Até Março 2026, umas boas festas e um ano novo diferente.

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