Por Alfredo Soares-Ferreira *
Invoquemos uma qualquer pseudo-ciência, para criar um termo que nos parece bem adequado ao momento presente. Façamos então de conta que, a partir de agora, passa a ter lugar no espaço público, pejado que é de novas “disciplinas”, o termo “Debatologia”, que caracteriza uma nova, que é o estudo sistemático dos debates como um tipo específico de comunicação humana. A Debatologia, ora instituída, vai além da simples “arte de debater” (retórica ou oratória) e investigará a estrutura dos debates, a dinâmica da interacção, a lógica dos conflitos de opinião, a psicologia do debate e, naturalmente, a classificação de debates. Passaremos então a saber, quais são os componentes fundamentais de qualquer debate: como as pessoas se comportam durante um debate, quais as estratégias e tácticas que usam e como ocorre a persuasão, como se poderão identificar falácias, inconsistências e solidez de argumentos, como se estudam os aspectos emocionais, cognitivos e motivacionais dos debatedores e da plateia. No final, como ponto máximo e obrigatório, a definição das regras de classificação, dos pontos de vista político, científico, jurídico e do vulgar quotidiano. Com esta nova ciência, de âmbito interdisciplinar, que combina ingredientes da lógica, linguística, psicologia, sociologia, retórica e comunicação, passamos a dominar completamente o Debate e, entre outras possibilidades redundantes, poderemos, por exemplo, afirmar com segurança que o Candidato A venceu o Candidato B, por um significativo 3 a 0. Contudo, este resultado só terá efeito prático se for validado por um júri, tipo var do futebol, que explicará à população o resultado, fazendo o sinal rectangular da praxe e apontando para a única hipótese possível: a decisão final, a classificação.

Da forma enunciada (ou sentenciada) a população não precisa de emitir qualquer posição, devendo naturalmente ficar grata a um sistema que pensa por ela, poupando assim um tempo precioso, que deverá ser aproveitado para aumentar a produtividade, a qual, como se compreende deverá sempre ser incrementada. Para que o debate tenha qualidade, deverá ser um espectáculo, com tempo cronometrado ao segundo para que ninguém consiga desenvolver um raciocínio completo, dispor de uma moderação “imparcial” que intervém sempre que alguém se aproxima de uma ideia estruturalmente incómoda e contar com gráficos animados que mostrem “quem está a ganhar”. Essencial será exigir “respeito”, contando para tal com a necessária “moderação”, de linguagem e de decoro pessoal, não sendo permitido, que um Candidato rotule o outro, utilizando termos não-enquadrados na lógica burguesa do consenso entre classes; um exemplo possível, será impossível designar um candidato de fascista, por não ser de bom tom.
Iniciados que foram os debates entre candidatos, importa reflectir um pouco, mesmo sabendo que provavelmente de nada conta a reflexão. Poderemos questionar a razão pela qual se nomeia, muitas vezes, o Presidente da República como o “Chefe de Estado”. O questionamento, levado a sério, descortina esta extraordinária figura de estilo, saída directamente do manual do autoritarismo envernizado, aproximado o cargo em apreço de um capataz para uma plantação de escravos modernos. Na verdade, não serão poucas as vezes que essa entidade opressiva, definida pelo intelectual alemão Max Weber, a única capaz de legitimar a força física, detendo o monopólio da violência, se torna repressiva, vigiando-nos com câmaras e reprimindo-nos com polícias de choque sempre que ousamos protestar contra o custo da electricidade ou a privatização da água. Nada acontece por acaso e a retoma da designação, supõe uma determinação evidente de hierarquia, obediência e submissão, instituindo um “chefe”, o patrão do Estado, uma espécie de CEO da opressão, o grande irmão com sorriso de campanha. A verdade é que, nos debates, muito poucos questionam esta figura, assumindo-a como natural, como se a República fosse uma empresa e nós os accionistas minoritários, que aplaudem o relatório anual de actividades. Se assim for, ou seja, se consumarmos a ideia de que o Presidente é mesmo o “Chefe”, será legítimo equacionar a sua abolição, desmontando o Estado como máquina de controlo burguês e substituí-lo por algo horizontal, comunitário e sem capatazes, esse sim, um debate democrático.
Quando, num dos primeiros “debates”, um dos Candidatos mais institucional, conhecido pelas suas ligações estritas ao Poder, nas suas mais diversas facetas, se arroga no direito de considerar o “parceiro de debate”, como “candidato de facção”, estaremos provavelmente no cúmulo do ridículo. Todavia, pensando um pouco, a coisa funciona mesmo assim, uma vez que o primeiro se auto-considera melhor e maior que o segundo, porque para ele a diferença percentual dos partidos que “representam” é abissal, ainda que estas sejam eleições em que cada candidato é uma pessoa individual.
No final do século XIX, alguns jovens de Coimbra, integrando a chamada Geração de 70, formaram o que se pode considerar o parto intelectual da modernidade em Portugal. Impulsionando uma revolução cultural e literária no País, substituíram o romantismo pelo realismo, colocando a ciência e a razão no centro do discurso intelectual, politizaram a cultura, ligando-a intimamente a projectos de transformação social, com ideais republicanos e socialistas e criaram as condições ideológicas e morais para a implantação da I República em 1910. Homens como Antero de Quental, Eça de Queirós e Oliveira Martins, entre tantos outros, iriam imaginar e pôr em prática as Conferências do Casino, no ano de 1871, em que o debate era mesmo levado muito a sério, sem truques e sem espectáculo, que, nas palavras de Eça, quiseram “acordar Portugal do seu torpor secular“. O objectivo final era, por esses tempos, o ataque cerrado à Monarquia, com uma carga ideológica rica em conteúdo e elegante na forma burguesa da época, citando Alexandre Herculano, a Revolução Francesa, e as ideias do filósofo político francês Pierre-Joseph Proudhon, que influenciaram Antero. Os argumentos existiam e continham um peso intelectual assinalável e os discursos eram emotivos, apelando à “pátria em perigo“.
O crítico cultural norte-americano Neil Postman escreveu e teorizou sobre o impacto da tecnologia e dos meios de comunicação na sociedade. Na sua obra de 1985 “Amusing Ourselves to Death: Public Discourse in the Age of Show Business” (Divertindo-nos até à morte: o discurso público na era do show business), argumenta que a televisão transformou o discurso público (política, notícia, educação, religião) em mero entretenimento, reduzindo questões sérias a espectáculos visuais superficiais e prejudicando o pensamento crítico e racional, herdado da era da imprensa escrita. Curioso será que as suas críticas à televisão, ao consumismo tecnológico, à trivialização da política e à perda de valores humanísticos atraíam admiradores de todo o espectro político e partidário.
A debatologia centra-se em si mesma. Ignora os cidadãos e os trabalhadores. Ocupa o espaço de debate e transforma-o em espectáculo, imposto como norma e abuso de poder do próprio espaço público. Configura uma arena, um circo barato, onde a qualidade dos artistas é, na sua imensa maioria, absolutamente medíocre e estupidificante. As honrosas excepções são engolidas pela máquina trituradora de consciências, sem qualquer rebuço e deixadas à sorte da sua manifesta pequenez, ditada pelos números das sondagens e estudos de mercado que produzem um simulacro de democracia e a ilusão do debate.

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