A retórica do “momento inadequado”

O momento nunca é oportuno. Ou porque é desadequado, ou desactualizado, nunca enquadrado e nunca conveniente. Sobretudo, uma greve. É sempre um acontecimento que provoca os comentários mais primários, os sentimentos mais pungentes, quer no pró, quer no contra. O que talvez poucos atentem é que uma greve é um prejuízo para o trabalhador que não vai receber o seu salário e que o troca pela luta. Costuma dizer-se que, após tentar a negociação e ela não resulta, a greve é o último recurso do trabalhador para fazer valer a sua posição. Na verdade, apesar do senso comum apontar para aí e esta asserção ser demasiado frequente, sobretudo com o acrescento, “depois de esgotadas todas as formas...”, a greve deve ser vista como o poder efectivo dos trabalhadores sobre o processo de produção. A greve, sendo um instrumento de classe, pode ser a expressão da tomada de consciência dos trabalhadores, do seu poder colectivo e da consequente necessidade de se organizarem, para além das reivindicações imediatas. A greve deriva da insatisfação do resultado de uma negociação sobre uma reivindicação económica, mas aponta necessariamente para o sentido político da luta contra o próprio sistema capitalista.

Na sua imensa vulgaridade, eivada de tiques autoritários, próprios de quem não sabe ser Poder, o actual primeiro-ministro (PM) de Portugal, classificou a greve como “extemporânea” e “anacrónica“, afirmando que “ninguém a consegue compreender“. Para já, esta última afirmação é abstrusa, dado que parece ser evidente que alguém a consegue compreender. Tanto é assim, que ela é essencial para marcar uma posição de força contra uma medida muito concreta, o dito pacote laboral do governo que, embora sob a forma de proposta, prepara o terreno para mais uma ofensiva contra os trabalhadores. O eventual cinismo do senhor em questão levaria a concluir que as organizações sindicais estariam com uma intenção oculta, ao invés da declarada defesa dos trabalhadores. Não irá decerto tão longe o raciocínio do personagem, ficando certamente pelo discurso atrapalhado e intempestivo que o conduz, por exemplo, ao choque frontal com o parceiro político que lhe permite a aprovação do orçamento para o ano que vem. Neste PM está patente a arrogância de quem acredita que o seu ponto de vista representa a totalidade da opinião pública “sensata”. A sua posição representa, de certa forma, um apagamento da alteridade, uma vez que nega a possibilidade de que outras pessoas, com experiências, prioridades ou informações diferentes (nomeadamente, os sindicalistas e os trabalhadores que representam), possam ter motivos perfeitamente válidos e compreensíveis para a sua acção. O “ninguém” é, na prática, um “eu e os que pensam como eu“. Um líder com alguma astúcia deveria ser capaz de compreender os motivos do adversário, mesmo que discorde deles. A falha em fazê-lo, ou a escolha estratégica de não o fazer, pode ser interpretada como uma falta de inteligência política ou de empatia estratégica. Para além de algum défice no sentido cognitivo, pelo menos a nível da linguagem e funções executivas, é uma cegueira política voluntária ou involuntária.

Na opinião do filósofo e activista político norte-americano Noam Chomsky, está em jogo, em casos semelhantes uma manufactura do consentimento, ou seja o uso dos órgãos, ditos de comunicação social, que são utilizados pelas elites como uma retórica para moldar a opinião pública e enquadrar os protestos como irracionais ou perigosos. No caso particular da greve, classificada como “incompreensível” e “anacrónica“, configura-se como uma retórica do “momento inadequado”, mais uma técnica clássica para manufacturar o consentimento público contra os sindicatos e a favor da agenda governamental. Na verdade, o argumento da “extemporaneidade” deve ser interpretado como uma manobra da classe dominante para desarmar a outra classe no conflito permanente pela posse e pela distribuição de riqueza. Na linha de uma conclusão idêntica, mas partindo do conceito de violência simbólica e do poder de nomear, o sociólogo francês Pierre Bourdieu diz-nos que a linguagem não é só descritiva, mas performativa também, ou seja, quem tem o poder de definir os termos (por exemplo, neste caso “greve extemporânea“) domina a percepção da realidade. Desta forma está o PM a exercer um poder simbólico ao tentar enquadrar a greve com um adjectivo que a invalida: “extemporânea“. A um mês da greve geral, toda a comunicação social burguesa está a provar a tese de Chomsky, prestando um serviço de denegrição da luta dos trabalhadores. Os frequentes chavões “o País está farto de greves”, “as greves só prejudicam as pessoas…”, entrecortadas com a afirmação hipócrita, “claro que os trabalhadores têm direito a fazer greve”, só faltando dizer, sim, mas quando nós entendermos.

O cinema sempre foi uma das artes que “explica” a luta proletária. Os realizadores russos, pioneiros da linguagem, da teoria e da estética cinematográfica, influenciaram outros mestres, um pouco por todo lado. No ano de 1925, Serguei Eisenstein, com apenas 26 anos, cria e realiza “A Greve”, um clássico do cinema mudo soviético que retrata a repressão de uma greve operária na Rússia czarista. A genialidade da sequência final, intercala a repressão violenta aos grevistas com cenas do abate de um boi, no matadouro, uma montagem que não é metafórica, mas analógica, introduzindo na mente do espectador um significado muito especial: para o sistema capitalista, os operários são gado, abatidos impiedosamente. “A Greve” expandiu para sempre o vocabulário do cinema, demonstrando que a edição não é apenas uma ferramenta para contar uma história, mas uma arma para forjar ideias e emoções. Um outro exemplo de cinema militante é a obra “A Classe Operária Vai ao Paraíso” de Elio Petri, de 1971, vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes, que conta a estória de um operário especializado que é mostrado como exemplo, na verdade, um cão-de-fila do patrão, com a vida transformada numa rotina alienante e repetitiva. Mas a sua vida muda quando entra em contacto com um grupo de operários de esquerda e estudantes em protesto, vendo a realidade da exploração e alienação, mas dando também conta da burocratização dos aparelhos sindicais e dos partidos, algo distantes dos verdadeiros desejos e da humanidade dos trabalhadores. A cena final do filme é patética, mostrando o grito abafado do operário Lulù, na linha de montagem a olhar para a câmara, enquanto o ruído ensurdecedor das máquinas recomeça. O verdadeiro “paraíso” não é o céu, mas a prisão dourada do salário e do consumo, enfim, o regresso à alienação.

A greve prevista para 11 de Dezembro próximo enfrenta algumas dificuldades derivadas da fragmentação da classe trabalhadora, que dificulta a concretização da organização. Todavia, potencia novas formas de resistência, desafios e palavras de ordem combativas e desestabilizadoras do poder burguês, constituindo em si um gérmen revolucionário. A greve é um acto de presença e resistência a formas subtis de violência política, uma junção de vontades no protesto, capaz de gerar um discurso poderoso que redefine o espaço político. Desta forma, a greve pode ser o salto necessário para vencer a tirania do “agora não é a hora”, definindo, assumindo e controlando o tempo legítimo do protesto e de fazer vingar o direito de existir no espaço público.

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Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.

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