Por Alfredo Soares-Ferreira *
“I found an island in your arms
Country in your eyes
Arms that chain us, eyes that lied…”
“Break On Through (To The Other Side)”,
Jim Morrison (1967)
Será o “acordo” uma peça de teatro mal encenada, ou apenas um ensaio onde o Ocidente testa o Poder absoluto, apostando num personagem pífio? Sabendo de antemão que do outro lado do Atlântico nos chega tudo que escapa à lógica do humanismo e da razão, hoje como antes, sempre a mesma pose arrogante, não de sabedoria e conhecimento, antes de um populismo barato, que ecoa por toda a Europa, sob a capa de uma “união” sem razão e sem sentido. A “cena” proposta, inicialmente nada mais que que a tomada administrativa dos EUA sobre Gaza e a deslocação permanente da população palestiniana, viria a ter uma segunda versão, a que chamam “O Acordo”. Esta versão, de Setembro passado, “garante” que ninguém seria forçado a sair e, como tal, agrada a toda a Ocidentália, disposta a lavar as mãos da hipocrisia e da aposta deliberada na Guerra e, para muitos, no apoio ao extermínio. O plano de vinte pontos estabelece etapas para um cessar-fogo, a libertação de reféns, a reconstrução de Gaza e uma nova estrutura de governação para o território. Diz-se para “acabar com a guerra” e mistura deliberadamente as questões de “segurança” e de “estabilização” do território. Uma das evidências do propósito neocolonial é que Israel poderá manter uma “presença de perímetro de segurança” até que Gaza seja considerada segura. Para pôr fim às hostilidades e garantir a dita “segurança”, estabelece o cessar-fogo imediato, o desarmamento do Hamas e a destruição da sua infraestrutura militar, Gaza como zona “livre de terror e desradicalizada” e, finalmente a criação de uma Força Internacional de Estabilização. O texto propõe a supervisão, através de um “Conselho de Paz” internacional, presidido por Trump, bem como o estabelecimento de condições para uma via credível para a autodeterminação e estabilidade palestiniana, vinculadas a “reformas da Autoridade Palestiniana”. Se dissermos que aquele “conselho” quer incluir o “sir cavaleiro da defesa da paz”, chamado Tony Blair, estamos mesmo na esfera do ridículo absoluto, uma encarnação perfeita da decadência ocidental. Não esquecemos certamente as consequências de uma guerra que resultou na destruição do Estado iraquiano, na morte de centenas de milhares de pessoas e no desencadeamento de uma década de instabilidade e conflito sectário no país e na região, na qual Blair foi um dos responsáveis directos. A confirmar-se este cenário, o mínimo que se poderá dizer é que nenhuma população, muito menos a tão traumatizada pela guerra e pela ocupação como a palestiniana, aceitará ser tutelada por uma figura tão associada à destruição colonial moderna.

Existe hoje uma emergência em quebrar estes e outros mecanismos de Poder, na lógica da dominação económica e política, que representam externamente a dependência, através de instituições financeiras, acordos assimétricos e intervenções. E, a nível interno, a dominação social e política através do estado policial, nacionalismo étnico e supressão de dissidências. Quer um quer o outro, parecem ser baseados numa espécie de hierarquia de valor humano, em que algumas vidas e vozes são consideradas superiores e as outras descartáveis. Na verdade, apenas tentam impor a ideia do “outro” como atrasado e incapaz de se autogovernar, acrescentando ainda a invenção do inimigo necessário para justificar a concentração de poder e a violência, a ideia do “outro” (imigrante, minorias) como ameaça. Ao tentar analisar a situação da Palestina, não podemos deixar de recordar uma das grandes obras do escritor e filósofo russo Fiódor Dostoievski, “Os Demónios”, publicada em 1872. Nela se expõem situações de um incrível realismo, a miséria, a alienação, a degradação humana e a hipocrisia das classes privilegiadas sob o czarismo. E, se nos lembramos dele é precisamente porque tendo conseguido entender a profundidade da crise, não defendeu as soluções necessárias, ficando pela perspectiva conservadora-cristã de uma visão trágica que temia e combatia as utopias revolucionárias. Hoje sabemos e vemos em acção os demónios e não cairemos decerto no mesmo erro. Quem conhece bem a realidade de alguns demónios em particular, é o médico palestiniano, residente no Canadá, Izzeldin Abuelaish, que perdeu três filhas e uma sobrinha, mortas pelo bombardeamento de um tanque israelita à sua casa. Abuelaish, que tem como ideal a Educação para a Paz, diz que não sente ódio mas, ao mesmo tempo, condena a ocupação, enfatizando que a paz só é possível com liberdade, dignidade e direitos iguais para ambos os povos.
Constatamos, infelizmente, a instrumentalização da violência, como ferramenta legítima para manter a ordem desejada pelo poder, em especial por este poder obsceno de um estado fora de todas as leis. E perguntamos legitimamente como pode ser possível qualquer acordo que afinal se destina, acima de tudo, a preservar a ordem hegemónica que rejeita a pluralidade, a igualdade e a autodeterminação. Amílcar Cabral dizia, a propósito, que o colonialismo é a negação da história do povo oprimido. Ao ler, ao ver e ao sentir este “acordo”, sabemos que vamos decerto assistir a mais violência, ora legitimada pelo poder da força, do império que, mesmo decrépito, continua a querer determinar o futuro. É a civilização ocidental, que pregou durante séculos a soberania e a democracia, a mostrar o seu verdadeiro rosto: o do controlo imperial sob novo invólucro. Será, uma vez mais, a decadência em acção. O que se pretende com o chamado “acordo” não é mais que justificar o que o sociólogo peruano Aníbal Quijano designa de “espoliação colonial”. O que está em causa é a construção de um imaginário que estabelece diferenças incomensuráveis entre colonizador e colonizado, onde este surge como o “outro da razão”, com uma marca identitária de maldade e de barbárie e o colonizador que tem a chancela da civilização, associada à bondade e à racionalidade. O que o “acordo” pretende é um acordo da perda de identidade.
No seu poema, Morrison fala em romper, uma escolha decisiva e irreversível de “quebrar” barreiras. A circunstância (poética) de encontrar “Um país nos teus olhos”, não se dissocia dos “olhos que mentiram”, nem dos “Braços que nos acorrentam”. Apesar de (ele) ter encontrado “uma ilha nos teus braços”.
Contudo, “O outro lado”, pode manter um mistério, mas apenas reforça a escolha.

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