O grande desconcerto

Um “concerto” especial toma lugar de destaque todos os anos, assumindo contornos de rotina política, por vezes com a pomposidade única que a institucionalização do Estado lhe outorga. O étimo latino “concertare” não oferece qualquer dúvida, associando-se harmoniosamente a um ajuste ou combinação, para obter um acordo. Mas não só, o âmbito alarga-se no sentido de produzir um som melodioso, como o da orquestra, num concerto, em que uma organização intencional de sons e silêncios aspira à harmonia; o seu acto supremo é consubstanciado numa sinfonia, uma obra de arte que representa o ideal, o espiritual, um símbolo da criação; mesmo quando aparentemente dissonante, a eventual dissonância está ao serviço de uma ordem estética e de um objectivo emocional ou intelectual superior.

Ora, o acordo pretendido na designada “concertação social” não passa da tentativa de produzir um instrumento de hegemonia cultural de quem detém o poder e define o que é “concertado“, como razoável ou harmonioso; o contraponto “desconcertado” é assimilado ao radical e desestabilizador. Ou, se quisermos, de como facilmente se neutraliza a oposição não através da força, mas através do domínio do vocabulário e do enquadramento do debate. Acontece que o “desconcerto” social é afinal o processo histórico em curso, marcado pela assimetria de poder, pela exploração e pela negociação forçada e representa o real, o material, o campo do conflito, ou seja, a luta de classes, um processo de desarmonia que não tem solução pela gestão de conflito que a “concertação social” tenta gerir. Produto típico das democracias industriais europeias do pós-guerra, a concertação social foi adoptada em Portugal, depois da Revolução, como ferramenta dita de modernização e integração europeia, no seio (e fazendo parte) do sistema formal e institucionalizado, que se instalou depois do 25 de Novembro de 1975 e que terá significado, no período pós-troika, a legitimação das políticas de austeridade, reformas laborais e cortes nos salários e pensões.

Diversos e muito variados são os contributos, muitas vezes de evidente cumplicidade, da música, tornando o concerto numa arma de conhecida eficácia. O compositor e pianista russo Dmitri Shostakovich, seguidor do  romantismo tardio de Mahler, é seguramente um dos intérpretes mais sólidos da música do seu tempo. A sua sinfonia nº 7 “Leningrado” constitui um monumento musical à resistência de um povo; composta durante o cerco nazi a Leningrado, o seu tema de marcha, que cresce num crescendo opressivo, é a musicalização pura da luta contra a dominação. É o “concerto” como arma de guerra e sobrevivência, tornando-se um símbolo de resistência social extrema. Já na segunda metade do século XX, Kurt Weill, compositor alemão que fez, com o dramaturgo Bertolt Brecht, uma parceria definitiva da crítica social musicalizada, que haveria de culminar na “A Ópera dos Três Vinténs“, estreada em Berlim em 1928, a sátira mais feroz à hipocrisia burguesa, onde bandidos e capitalistas são moralmente indistinguíveis. Os compositores comprometidos com a transformação social apostam sempre no conceito que a grande música nunca existe num vácuo e admitem-na como uma espécie de barómetro da consciência humana e uma das mais poderosas formas de filosofia social. Poderá dizer-se, em síntese, que é o “concerto” perfeito não para fugir do “desconcerto” do mundo, mas para o iluminar, criticar e, em última análise, tentar transformá-lo.

Num tempo em que cada vez é mais crítica a situação social dos trabalhadores, com salários miseráveis, trabalho precário e aumento sistemático do custo de vida, com as rendas e os preços crescentes da habitação e o contraponto dos lucros astronómicos das grandes empresas e dos bancos e finalmente do papel do Estado patrão, falar em “concertação social” é, no mínimo, o ridículo absoluto. Neste contexto, a mesa de concertação não é um campo de jogos nivelado, mas sim um espaço onde a correlação de forças, favorável ao capital, é institucionalizada e legitimada. Tal concertação opera uma subtil, mas poderosa, manipulação linguística, sendo a linguagem do consenso utilizada como instrumento de coacção, bastando para tal constatar que o vocabulário do conflito de classes, “exploração“, “luta“, “direitos conquistados” é substituído pelo léxico neoliberal da gestão e da economia, tutelado por, “responsabilidade“, “competitividade” e “sustentabilidade“. A este propósito, o filósofo e sociólogo grego Nicos Poulantzas estudou profundamente o funcionamento do Estado capitalista e das suas instituições, nomeadamente a burocracia, o poder executivo e o poder legislativo, bem como a base ideológica que o sustenta. Desenvolveu e sustentou a tese de que o Estado não é simplesmente um instrumento directamente manipulado pela classe dominante, mas um campo de luta que, para manter a coesão social, pode ocasionalmente conceder benefícios às classes subordinadas, de forma a assegurar a sua função última, reproduzir as condições gerais para a acumulação capitalista. Para Poulantzas, a “concertação social” é um perfeito exemplo deste processo: o Estado “autónomo” organiza um espaço onde podem ser feitas pequenas concessões, mas sempre dentro de limites que não ponham em causa a estrutura do sistema.

Para entendermos bem o que é a dita “concertação social“, podemos em rigor dizer que o termo em si não passa de um oxímoro, ou seja, uma contradição nos termos, que revela a sua própria impossibilidade. O substantivo “social” reporta à esfera pública, como espaço de pluralismo, da divergência e do conflito de interesses, implicando debate, disputa, negociação, dissenso e luta pelo poder. O acto da “concertação” (ou “concerto”) implica harmonia, sincronia, acordo, consenso e uma ordem pré-estabelecida e seguida por todos, sabendo à partida que a sociedade é, por natureza, heterogénea, dinâmica e conflituosa.

A realidade da vida em sociedade não é um concerto sinfónico, mas tão só um campo de batalha de ideias, interesses e valores, onde os acordos são sempre temporários, parciais e contestados e onde a única “harmonia” possível é o respeito pelas regras do jogo que permitem que o conflito se expresse livremente, sem a pretensão de o silenciar.

About the Author

Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.

Be the first to comment on "O grande desconcerto"

Leave a comment

Your email address will not be published.


*