Zonas cinzentas e seus habitantes

Alfredo Soares-Ferreira *

Multiplicam-se por todo lado as zonas cinzentas. Fruto alimentado no pântano em que se tornou o território social, em que predominam espécies em vias de crescimento e expansão, que compaginam com a mediocridade e o pensamento limitado e a que é suposto chamar “populismo”. Não têm qualquer problema em apelidar-se “moderados” e “do centro”, abjuram claramente teses que apelidam de “ideológicas”, as quais, no seu entender, atentam contra o interesse colectivo, que obviamente pensam representar. Para melhor se apresentarem, afirmam rejeitar “extremismos de direita e de esquerda”, colocando-se num eventual pedestal, que acreditam piamente ser trampolim para um eventual “desígnio”.

Pululam entre rádios e TV, escrevem em jornais e revistas, com pensamento qualificado em coisa nenhuma, passeiam diariamente a sua verborreia e anti-sabedoria. A única “qualificação” que parecem possuir é apenas o livre exercício da asneira e do disparate.

Exemplos são aos montes e é difícil descobrir-lhes diferenças. Estão fervorosamente apostados em dominar o espaço público, que, para eles é o privado da mediania. Constituem-se como uma das zonas cinzentas da sociedade. Odeiam os trabalhadores e as suas organizações, que, para eles representam um perigo iminente, não só no aspecto formal, como no imaginário.

Os nativos destas zonas cultivam a ignorância e o medo. Falam alto, no pretenso bom som e na sua vontade de se fazerem simplesmente ouvir.

Aparentemente estudam os dossiês de forma leve e descuidada e facilmente caem em contradições, que, contudo, interpretam sempre de forma sobranceira. Citar-lhes os nomes é dar-lhes mérito que não têm. Um exemplo recente mostra uma dessas figuras menores a proclamar a morte do Partido Comunista Português e a “manifesta impossibilidade” em entrar numa solução governativa, porque está “contra a Ucrânia que todos defendemos”. Outro, perante a opinião do entrevistado sobre a natureza do Hamas, dizia, é “terrorista”, porque assim o classificam os EUA e a UE.

O conceito de “zona cinzenta”, uma zona de contornos mal definidos, foi exposto pelo escritor italiano Primo Levi, baseado na sua experiência no campo da morte de Auschwitz, onde permaneceu durante quase um ano. Pensado e reflectido nas relações humanas em situações extremas, constitui um testemunho a uma análise da condição humana, um espaço nebuloso de indeterminação moral, conforme a classificação do professor brasileiro Aislan Maciera. Este investigador de Levi sustenta que é preciso sempre ter em vista os pontos cegos que definem as fronteiras das zonas cinzentas, para calibrar algumas respostas, através de uma cartografia própria.

Na sua última obra, “Os afogados e os sobreviventes”, concluída em 1986, um ano antes da sua morte, Primo Levi transforma em conceito a “zona cinzenta”, uma espécie de “chave de leitura”, uma ferramenta que abre as portas para novas possibilidades de interpretação de uma série de fenómenos nos campos da ética e da política.

Judeus (1944) e Palestinianos (1955)

Há uma asserção mortífera, que tem atravessado o espectro político, “À justiça o que é da justiça, à política o que é da política”. Para além da vacuidade formal, este “pensamento”, que pode incluir até um conceito, ou, no mínimo, uma postura, uma forma de instituir mais uma zona cinzenta, não abarca o essencial. Que é afinal o de “justiça política”, formulação onde cabe a correlação entre o cumprimento de objectivos pré-definidos, da natureza jurídica ou política, com as solicitações e necessidades específicas de justiça, respeitantes a grupos e comunidades definidas, teorizado pelo professor de filosofia política britânico John Rawls.

A base da justiça política pressupõe, por exemplo, que, em condições adversas e de exclusão, nomeadamente quando determinadas políticas públicas geram injustiças sociais evidentes, se instituam alterações no sentido de proteger os direitos fundamentais e na inserção social de comunidades desfavorecidas, ou mesmo, excluídas. A política determinará assim sempre a forma de interpretação, gestão e administração da justiça.

Os habitantes das zonas cinzentas não têm um património próprio. Quem os sustenta e alimenta detém a responsabilidade da sua existência e proliferação e investe provavelmente no vazio da sua insignificância. Mas, por outro lado, na sua capacidade como “influenciadores” de uma opinião pública carente e desprotegida. Não é certamente em nome do conhecimento e da cidadania. Mais parece ser um apelo à ignorância e à mediocridade, cultivando estes “valores”, que se traduzem no espectáculo mediático, se possível, com algum sangue à mistura.

Os nativos destas zonas cultivam a ignorância e o medo. Falam alto, no pretenso bom som e na sua vontade de se fazerem simplesmente ouvir. Há os que detêm algum poder e, como tal, usam-no indiscriminadamente. Há outros, sem poder algum e que trepam por aí, com os meios que têm à disposição, nomeadamente nas redes sociais, um campo fértil ao mediatismo e à estupidificação e que desejam, acima de tudo, impor um estado contínuo de imediatismo ignorante, em que o outro é sempre um inimigo.

Saber compreender o carácter particular, e não geral, da verdade é um ensinamento que vem, pelo menos, do século XVIII, formulado pelo poeta inglês William Blake, homem que sempre resistiu à simplificação da experiência de pensamento.

Nas zonas cinzentas não há lugar à relatividade e a verdade é uma e indivisível.

About the Author

Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.

1 Comment on "Zonas cinzentas e seus habitantes"

  1. António Avelãs | Dezembro 1, 2023 at 4:24 pm | Responder

    EXCELENTE TEXTO. Vou divulgá-lo!

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