Uma questão de Segurança Pública

Por Alfredo Soares-Ferreira*

O que dirá o cidadão quando sabe que, nesse momento em Portugal, existem “forças de segurança” que a única segurança que dão é puramente virtual? Quando souberam, nos últimos tempos, do acumular de investigações que levaram a concluir da violência utilizada pelos polícias, pelas demonstrações evidentes de puro racismo e pela ligação a grupos de extrema-direita? A questão que ora se deve colocar é qual o impacto nas autoridades, para além do inquérito que foi mandado instalar pelo Ministro da tutela. Todavia, a questão fundamental é saber até que ponto está comprometida a “segurança pública” que estas forças deveriam assegurar. E, não menos importante, saber se essas “forças” constituem uma protecção dos cidadãos ou um perigo para a Democracia. O facto evidente é que existem membros efectivos dessas “forças” que estão armados e, como tal, podem, em qualquer altura utilizar a arma, contra os alvos por quem dizem expressamente sentir repúdio, ou mesmo, ódio.

Tempos houve, dos quais alguns ainda se lembrarão, quando, no auge da Revolução de Abril se exigia a dissolução imediata da PSP e da GNR. Estas polícias, foram sempre órgãos repressivos do estado novo. A história da repressão da GNR no Alentejo reporta, por exemplo, ao assassinato de Catarina Eufémia, em 1954, pelo tenente Carrajola. E ainda, em 1979, quando José Geraldo e António Casquinha foram assassinados por forças da GNR, na Herdade Vale do Nobre, quando protestavam, juntamente com outros companheiros, contra o roubo de gado da herdade. E ainda, mais recentemente, em Dezembro de 2021, quando militares da GNR se filmaram a torturar imigrantes asiáticos em Odemira, estando sete polícias acusados de um total de 33 crimes relacionados com alegados maus-tratos. A PSP é acusada, no ano de 2013, de maus-tratos durante as detenções, pelo Conselho da Europa, como resultado de uma visita de peritos daquela instituição a dez esquadras da PSP de Lisboa, duas de Coimbra e uma de Setúbal. E, mais recentemente, em 2019, um agente daquela polícia foi acusado pelo Ministério Público da prática do crime de tortura e outros tratamentos cruéis, degradantes ou desumanos contra um trabalhador agrícola estrangeiro.

O trabalho sucessivo de “limpeza” de chefias das polícias parece, contudo, não ser suficiente, quer para eliminar a sua essência repressiva, quer para erradicar métodos do passado. Como se pode compreender a forma como as polícias actuam, por exemplo, em determinadas manifestações de trabalhadores, ou perante cidadãos não-brancos de determinadas etnias ou ainda em acções de desocupação de casas? Como aceitar a complacência das autoridades que os tutelam, perante as diversas evidências e que permitem, por exemplo, que os agentes visados continuem ao serviço, por vezes, em outras esquadras?

A questão da segurança pública é central em qualquer análise inerente. De uma forma muito simples, poderia questionar-se para que servem as diversas polícias. O jurista brasileiro Riskala Matrak Filho refere a importância da segurança pública, tutelada por servidores públicos, que vise a garantia do exercício pleno da cidadania, uma situação na qual o povo vê os seus direitos civis e políticos garantidos por via da acção governamental. Refere, a propósito, tratar-se de uma actividade governamental que “…busca fazer pelo povo tudo aquilo que este não consegue fazer por si só́ para o bem viver no território...”. Todavia, uma coisa é o que diz a lei, uma outra será a prática que se constata, com exemplos do mais degradante desrespeito pelos direitos humanos. Que, a serem ensinados na escolas de polícia, o devem ser simplesmente de forma retórica. O polícia parece incorporar, no seu inconsciente, certos valores que procuram “inimigos” em figuras que escapam aos códigos burgueses tidos como “normais”, como sejam, por exemplo, artistas de rua, sindicalistas, estudantes, feministas e alguns jornalistas que se dedicam a causas particulares relacionadas com direitos de minorias. Parece muitas vezes que existe uma função histórica das polícias em criminalizar e neutralizar as manifestações populares e as organizações que apoiam a ocupação sistemática dos espaços públicos.

Gendarmerie em 1899

Uma outra questão, que tem sido objecto de estudo e investigação na Europa é a existência dos sistemas duais de polícia. Estes sistemas determinam a existência num mesmo Estado, de dois corpos com funções policiais, um militar e outro civil, com competências policiais genéricas para actuar em todo o território, mas em que cada um tem uma área de responsabilidade atribuída. O caso particular da GNR, em tudo semelhante às Gendarmeries de França (onde o conceito surge, no tempo de Napoleão), da Bélgica, da Holanda, de Itália e de Espanha. Neste país, é conhecida a influência da designada Guardia Civil e do seu papel decisivo no apoio à ditadura franquista. Uma das principais características destas polícias é a de uma força constituída por militares, com a tarefa primordial de manter a lei e a ordem internamente, principalmente em áreas rurais e ao longo das principais vias de comunicação. E que detêm um estatuto militar, que supõe o treino, a formação e uma educação militar, bem como a sujeição à lei e justiça militares, com uma doutrina, valores e disciplina militares, usando equipamento e armamento militares, idêntico ao das Forças Armadas. Alguns países europeus abdicaram já deste tipo de forças, como são o caso da Grécia em 1984, da Bélgica em 2001, do Luxemburgo em 2002 e a da Áustria em 2005.

A Constituição da República Portuguesa consagra, no seu Artigo 272.º, que “a polícia tem por funções defender a legalidade democrática e garantir a segurança interna e os direitos dos cidadãos”, que “as medidas de polícia são as previstas na lei, não devendo ser utilizadas para além do estritamente necessário” e que, ainda, “a prevenção dos crimes, incluindo a dos crimes contra a segurança do Estado, só pode fazer-se com observância das regras gerais sobre polícia e com respeito pelos direitos, liberdades e garantias dos cidadãos”. O nosso País é conhecido como um exemplo de duplicação e, por vezes até, de concorrência disfuncional dentro do sistema de segurança interno, bem como de deficiente falta de coordenação e de cooperação entre os corpos policiais e até, por vezes, de conflitos entre eles.

Após o conhecimento das investigações dos jornalistas Filipe Teles, Pedro Coelho e Miguel Carvalho, para o jornal Setenta e Quatro e para a revista Visão e que reportam comportamentos contrários ao Estado de Direito, apelos declarados à violência e à violação de mulheres, comentários racistas, xenófobos, misóginos e homofóbicos e adesão declarada a movimentos de extrema-direita e saudosismo salazarista, por mais de 600 polícias armados, é natural que os cidadãos, em vez de confiarem nas polícias, tenham medo delas, por colocarem em causa a sua própria segurança.

As polícias tradicionais baseiam a sua existência nos anseios e necessidades da classe dominante. São na verdade órgãos de classe e como parece, à luz das evidências, irreformáveis. Os slogans “servir e proteger” parecem ser apenas e só propaganda. Nem os exemplos, verdadeiramente notáveis, de polícias que dedicam parte do seu tempo a proteger idosos e crianças, são suficientes para justificarem corpos policiais do tipo actual e que deviam, há muito tempo, ter sido substituídos por forças de segurança de proximidade e com uma filosofia comunitária de apoio e protecção do cidadão. Fica muito oportuno recordar as ideias de Sir Robert Peel, um primeiro-ministro do Reino Unido do século XIX, sobre a definição de uma força policial ética e democrática, o designado “policiamento por consentimento“, baseado no consenso de apoio, com transparência sobre os seus poderes e integridade no exercício das suas competências e da sua responsabilidade.

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Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.

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