“…Sei que há léguas a nos separar
Tanto mar, tanto mar
Sei também quanto é preciso, pá
Navegar, navegar…”
Chico Buarque de Hollanda, 1975
Por Alfredo Soares-Ferreira
A emergência das eleições no Brasil e a evidente necessidade de o país mudar de rumo é motivo de mobilização de cidadãos brasileiros, portugueses e de outras nacionalidades residentes em Portugal. São mais de 200 mil os cidadãos brasileiros, no nosso País. Estudam e trabalham em diversos sectores de actividade, transmitindo-nos o sotaque do samba e da bossa-nova e a alegria esfusiante do forró. Dos vários colectivos de cidadãos, a nível nacional, destacamos um, que dá pelo nome “Tanto Mar” e que lembra o quão necessário é navegar. O cheirinho a alecrim, de que fala o Chico, é para elas e para eles a quem, hoje e aqui, se dá o merecido destaque.
“O Brasil anda para trás”
Um título assustador, contudo de uma actualidade gritante. As palavras são da biomédica Helena Nader, professora universitária e investigadora, que é Presidente da Academia Brasileira de Ciências, por sinal, a primeira mulher a ocupar o cargo em 106 anos de história. Segundo a académica brasileira, a crise do ensino superior e o desmantelamento de programas e incentivos, promovido pelo governo Bolsonaro, levou a ciência brasileira a quase um ponto de não retorno. A investigadora denuncia a situação, a 15 de Julho corrente à revista semanal brasileira de informação “CartaCapital”, no que considera serem “…os sucessivos assaltos ao Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, a destinação dos recursos do pré-sal e a fuga de cérebros.” O pré-sal é uma grande reserva de petróleo e de gás natural encontrada em águas profundas, a mais de sete mil metros abaixo do nível do mar e localiza-se numa faixa de quase 800 quilómetros de extensão, nos Estados do Espírito Santo e Santa Catarina.
Este aviso não é único, no que reporta à degradação e expropriação de recursos naturais no Brasil e é o espelho das políticas neoliberais, destruidoras, desta administração.
Mas o Brasil andou para trás, na verdade, em praticamente todos os índices possíveis de catalogar, desde o desrespeito constante e sistemático pelos direitos humanos em geral e dos povos indígenas em particular, pela cultura e pelos artistas e intelectuais e pela perseguição, tortura e assassínio de cidadãos que se manifestaram ou simplesmente se limitaram a discordar. Lembra-se aqui, a este propósito, o assassinato da activista política Marielle Franco, em Março de 2018, vereadora eleita do Rio de Janeiro e do seu motorista, Anderson Gomes, um acto de violência extrema. Na realidade, quatro anos depois, continua sem resposta uma investigação, da qual resultou a prisão de dois indivíduos, que não consegue determinar quem foi o mandante.
O Brasil andou para trás, quando este governo tomou posse, ao instigar o ódio à diferença e à democracia.
O Colectivo “Tanto Mar”
Na opinião dos promotores deste Colectivo, que nasceu na Cidade de Braga, a ideia nasce na “…inquietação sentida por alguns cidadãos brasileiros residentes em Braga, democratas e de esquerda, com o golpe político que viria a afastar Dilma Russeff da presidência do Brasil, num processo premeditado para abrir portas ao regresso de políticas de cariz autoritário, crescentemente antidemocrático, das quais o país se tinha afastado a partir dos governos presididos por Inácio Lula da Silva.”
Inicialmente apenas um grupo informal que adoptou a designação “Colectivo Marielle”, uma homenagem natural à activista, uma mulher “incómoda para a direita fascista” que acabou por ser uma das vítimas de uma situação onde reina uma certa sensação de impunidade na justiça, perante este e outros crimes.
Pode ler-se no manifesto de apoio ao movimento: “A governação política que entretanto se instalou tem procurado criar a ideia de que age em nome da liberdade – sobretudo de uma suposta liberdade individual – mas esconde, por trás dessa palavra diáfana, vítima de interpretações falazes, o desprezo pelo outro, sobretudo se é pobre ou pouco instruído; o desdém pela responsabilidade coletiva, pelo dever da solidariedade, pela transparência da prática política; a surdez que demonstra em relação aos avisos da comunidade internacional a propósito das alterações climáticas; a insensibilidade que patenteia sobre a distribuição equitativa dos recursos e das oportunidades, a indiferença que revela para a necessidade de serem criadas condições justas de igualdade para todos, sem exceção – entre outros valores que sustentam o regime democrático, pilares indeléveis de uma democracia plena, de uma sociedade moderna orientada para o futuro.”
Com a nova designação “Tanto Mar”, o Colectivo quer também prestar homenagem ao 25 de Abril, em Portugal, no ano de 1974. A canção foi escrita originalmente em 1975 e releva os momentos díspares da nossa Revolução e da ditadura brasileira e remete para o mar e a saudade, dois ícones do imaginário lusitano.
Pode ler-se no manifesto: “Embora a canção diga que ‹‹há léguas a nos separar, tanto mar, tanto mar››, a verdade é que foi através desse imenso mar que Portugal e o Brasil se encontraram. Dessa maneira, apesar de o atlântico separar fisicamente os dois países, tem de se admitir que esse mesmo oceano também os une, tal como um cordão umbilical indelével que a língua comum e o ‹‹jeito próprio de ser›› da lusofonia nunca cortaram completamente ao longo de cinco séculos de história.”
Iniciativas e realizações do Colectivo
A organização e a realização de iniciativas diversas, de cariz cultural e político, fazem parte da dinâmica do Colectivo. Quer na participação em acções de outras entidades, quer ainda nas iniciativas próprias.
“Diálogos Insurgentes” é título para Encontros Internacionais. O primeiro, “A Democracia no Séc. XXI”, o segundo, “Os Movimentos Sociais e Suas Lutas no Contexto de um Governo Democrático-popular” e o terceiro, que vai ter lugar a 6 de Agosto, sob o título “A Economia no Brasil e no Mundo. Estamos num Estado de Exceção?”.
Um Ciclo de Cinema, que terá a colaboração do “Lucky Star, Cineclube de Braga” e onde irão passar, já no próximo mês de Setembro, três filmes sobre o nazi-fascismo: (1) A Tempestade Mortal, Frank Borzage, 1940(2) Esta Terra é Minha, Jean Renoir, 1943; e (3) A Grande Batalha, Sam Peckinpah, 1977. Este Ciclo pretende evocar a história e manter viva a chama da luta pela defesa intransigente da democracia. E obviamente servir também como apelo ao voto na candidatura de Lula da Silva à Presidência do Brasil, cuja eleição será no próximo mês de Outubro.
Tanto Mar!
Para os Membros militantes, “Tanto Mar é também uma expressão poética que se abre como as pétalas de uma flor, permitindo que a imaginação de cada um de nós se liberte e nos inspire no sentido de nos instruir a fazer tudo o que estiver ao nosso alcance para nos aproximarmos tanto quanto possível da utopia que move a nossa ação política e não nos deixa desistir de sonhar um mundo melhor, sejam quais forem os obstáculos que surjam no caminho.”
A canção teve duas versões, uma de esperança, a outra de aparente resignação. Se na primeira, em 1975, o Autor manifestava a vontade de estar cá, (“Eu queria estar na festa, pá//Com a tua gente//E colher pessoalmente//Uma flor no teu jardim…”), na segunda, em 1978, constatando a realidade da época, Chico Buarque de Hollanda diria “Já murcharam tua festa, pá//Mas certamente//Esqueceram uma semente//Em algum canto de jardim…”
Que a semente, seguramente não esquecida, seja agora utilizada, lá como cá, nos jardins e praças, onde a Democracia possa sempre florescer de novo.
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