Sons do Silêncio

“…And the vision that was planted in my brain 
Still remains 
Within the sound of silence
…”

Paul Simon, “The sound of silence”, (1964)

No meio de tanto ruído, provocado de forma sistemática, o espaço que resta ao pensamento crítico corre o risco de ser sucessivamente abafado, pelo menos na consciência, uma vez que, na prática, ele vem sendo devida e cuidadosamente formatado, deixando entreaberta a porta dos fundos por onde parece emergir uma certa inabilidade das pessoas para comunicar. A tal visão que o Poeta refere, plantada no cérebro, foge da retórica antiga e parece instalar-se na sociedade. Talvez fosse bom, poder ouvir o som de um silêncio, que servisse para retemperar as forças que possam começar a faltar. Nunca será tarde.

É a guerra, estúpido!

Na canção, vivem pessoas que falam sem falar e que ouvem sem ouvir (“People talking without speaking / People hearing without listening”), uma realidade cada vez mais actual. Particularmente em situações de instabilidade contínua e permanente, como é o de um cenário de guerra. Com a frase, “É a economia, estúpido!”, da autoria do publicitário James Carville, Bill Clinton viria a ser catapultado para Presidente USA. Na época, uma grande maioria de cidadãos estavam insatisfeitos com a Economia. Hoje, é com a Guerra, esse monstro insano e desumano. Na época, Clinton ganharia a Bush pai. Hoje, quem ganharia e o quê? Dizer, na situação actual, “É a guerra, estúpido!”, representa apenas uma chamada de atenção, sobretudo para quem andou, anos e anos, possivelmente distraído, face a iraques, afeganistões, sírias, israeis e palestinas, sérvias, coreias e vietnames, permitindo, pelo seu silêncio, todos os desmandos e arbitrariedades. Não é colocar qualquer atenuante ao agressor, mas talvez ajudar a compreender como aqui se chegou, e porquê, ao ponto em que nos encontramos. Muito embora, em política, raramente se possa falar em simples causas e consequências, mas sim na dialética permanente das forças e dos blocos que dominam a cena.

Até a guerra é “verde”

Mesmo estúpida, pode ser “verde” e sujeita a avaliações de impacte ambiental, na pretensão esdrúxula de uma resolução aprovada no Parlamento Europeu, que pede, no seu ponto 50, “…às instituições da União que avaliem o impacto ambiental da guerra na região”. Mas, tal como a do sistema que nos domina, económica e financeiramente, a “verdura” não passará de um embuste e de mais uma forma de fazer negócio. Agradecem os empresários e senhores da guerra, apoiados pela clique neoliberal, agora convertida à defesa da tese do fornecimento de armas e munições ao país invadido e do armamento de civis.

O cenário é um ruído imenso

O acontecimento inaceitável da invasão determinou, em primeira instância, uma alteração da realidade. Todavia, não deve ser considerado isoladamente, a história existe, os acontecimentos, pelo menos desde 2014, deixam lugar a algumas opiniões, que lembram o que antes se passou e a forma como os acontecimentos foram geridos. Uma posição possivelmente sensata, face à tentativa de instalação da visão apocalíptica que nos entra porta dentro todos os dias, nas rádios e TV. Dir-se-ia um cenário de ruído permanente que não se limita ao estilhaçar das armas. É também uma histeria mediática que pode levar a um fenómeno perigoso de privatização do pensamento e que nada ajuda nas (poucas) iniciativas de Paz, até agora. O ruído passa pelo matraquear constante das mesmas notícias, opiniões e comentários, vindos quase sempre do mesmo lado e, com um propósito firme de desvalorizar quem tenta relativizar, quem arrisque uma posição crítica em relação aos que agora se arvoram em grandes democratas e que têm provavelmente as mãos tão sujas quanto o agressor.

Impõe-se então o silenciamento das armas, para que a Paz não seja uma miragem e para que não vingue a tese do Estado de direito em retrocesso.

E a verdade?

A verdade é que não existe uma única. Por vezes seremos levados a aceitar acriticamente uma notícia como certa, quando na verdade, podemos estar perante uma interpretação, ou simplesmente, uma falsificação. Numa guerra como esta, um ataque a alvos civis pode ser entendido, antes pelo contrário, como a anulação de bases militares instaladas em equipamentos sociais. Onde estará a verdade? Todavia, a multiplicação de informação deturpada, ou simplesmente, não devidamente confirmada, determina decisivamente a formação de uma opinião pública, no mínimo, enviesada.

A “modernidade líquida”, como a designou o sociólogo polaco Zygmunt Bauman, é um conceito do presente actual, uma interpretação sobre aquilo a que chama fluidez social, que é caracterizada por um ambiente de incerteza permanente, uma tentativa de colocação da responsabilidade por eventuais fracassos no plano individual, um enfraquecimento dos sistemas de protecção individual e, finalmente, um divórcio completo entre Poder e política. Para contrariar, de certa forma, a tal tendência crescente de fluidez, devem ser consideradas muitas verdades distintas, cada uma pintada com as cores da diversidade, essa mesmo que defende as utopias. Que, para renascerem, precisam do potencial humano, segundo Bauman, um dos pilares da transformação.

É em defesa das utopias que poderá ser encontrado um caminho, vários caminhos, para a Paz. Precisamente o contrário do que está a ser feito, nos fóruns mundiais, onde parece ser mais importante, armar cada vez mais, erguer muros cada vez mais altos, tecer teias de guerra permanente, para alimentar os senhores da guerra e os interesses “superiores” que lhes estão associados, sob a capa, aparentemente diáfana, da necessidade da defesa.

Para não dizer que não falei da Ucrânia

Dizer que não confiamos em heróis, de sempre e de agora, nem em homens providenciais é o mesmo que afirmar claramente não à submissão e à dominação. Está bem patente à apreciação pública, quer a atitude agressiva e imperialista do chefe russo, quer o populismo rasteiro e imaturo do homólogo ucraniano. Joga-se a incerteza e deixam-se milhares de cidadãos sem casa e sem comida. A agressão é real, o tempo é curto para o diálogo. Quem o apoia estará a prestar um bom serviço à paz mundial. Quem incentiva a guerra, por palavras ou por actos, estará a contribuir para a subida de tom e para o desnorte na linha da frente, provocando dessa forma a exaltação dos falsos defensores dos povos.

A construção de uma geografia do silêncio, serena, eloquente e de sabedoria, poderá transportar-nos à categoria de consultores da Paz, pela emancipação dos cidadãos, na plenitude dos seus direitos.

Por um rotundo não à guerra e aos seus falcões.

Por um não determinado à militarização e ao armamento.

Pela Paz.

About the Author

Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.