Alfredo Soares-Ferreira *
A ideia de “soberania” data do século XVII, surgindo na ordem jurídica internacional sob a capa de instituto jurídico, para que o Estado se pudesse afirmar como um elemento essencial para o seu desenvolvimento e afirmação. Soberanos são considerados os estados que ostentam a conhecida máxima “Um governo, um povo, um território“, atribuída a Max Weber. Soberana é também a dívida, por ser considerada como o conjunto das dívidas assumidas ou garantidas pelo Estado, pelo menos no sentido estrito. Soberano é, segundo as definições habituais, aquele que detém o poder, o povo soberano, ou aquele que exerce o poder ou a autoridade sem restrições, neste caso, o governo soberano.
No século XX e no século em que vivemos, cultiva-se um conceito especial do termo “soberano”, naturalmente extensivo à reportada “soberania” e que pode ser associado a quem decide sobre o estado de excepção, bastando para tal recordar os tempos da pandemia, em que se usou e abusou da ideia, numa prática tipificada em sucessivas decisões estatais, em que ostensivamente abundaram as decisões para suspender a lei, justificando para tal uma “emergência estatal”. Recorde-se que o referido conceito foi explorado e difundido pelo filósofo e jurista alemão Carl Schmitt, um convicto defensor do regime nazi e que tal classificação se referia às vertente legal, constitucional e política da soberania.
Mas foi no século XIX que terá avançado um conceito jurídico de soberania, que supõe que ela pertence, de facto, ao Estado e não a qualquer autoridade particular. E mais, conforme as vastas formulações do filósofo alemão Immanuel Kant e do pensador político suíço Jean-Jacques Rousseau, que será a noção jurídica de soberania que orienta as relações entre os Estados, enquanto potências, e que tal princípio será a base da Constituição de cada país.
Assim é, no nosso País. A Constituição da República Portuguesa consagra, no seu artigo 1.º, que “Portugal é uma República soberana”, condição especificada no artigo 2.º, “A República Portuguesa é um Estado de direito democrático, baseado na soberania popular”. E determina, no artigo 110.º, os Órgãos de Soberania que exercem os poderes soberanos do Estado: Presidente da República, Assembleia da República, Governo e Tribunais.
Um organismo muito em foco nos últimos anos é o Ministério Público. O artigo 219.º da Constituição, estabelece-lhe as respectivas funções e estatuto: “Ao Ministério Público compete representar o Estado e defender os interesses que a lei determinar, bem como, com observância do disposto no número seguinte e nos termos da lei, participar na execução da política criminal definida pelos órgãos de soberania, exercer a acção penal orientada pelo princípio da legalidade e defender a legalidade democrática”. No Portal do organismo, pode ler-se que o MP é “…um órgão de administração da justiça, integrado na função judicial do Estado” e ainda “…é uma instituição que tem por finalidade garantir o direito à igualdade e a igualdade perante o Direito, bem como o rigoroso cumprimento das leis à luz dos princípios democráticos”.
Um conceito que está de certa forma ligado ao de soberania é o de “autonomia”. A etimologia do termo é grega e significa basicamente “lei própria”. Em ciência política, tal se pode associar, quer à faculdade de se governar por si mesmo (ou se reger por leis próprias), quer ainda a liberdade ou independência moral ou intelectual. Um conceito também utilizado em Educação e que reporta substancialmente à responsabilidade social da comunidade educativa, mas também à qualidade do “ser autónomo”, para mais adequadamente cumprir uma missão social específica.
Lembro o filósofo florentino Nicolau Maquiavel, que escreveu sobre o Estado e o governo como realmente são, e não como deveriam ser.
A hiperactividade recente do MP, que, apesar de ter autonomia, não é um órgão de soberania, é preocupante, quer do ponto vista ético, quer na perspectiva do exercício de um poder quase espectral, na assertividade que deriva de um desejo de exercício de uma espécie de contra-poder, bem ao gosto das teses do antropólogo francês Lévi-Strauss. Uma situação perfeitamente evitável, mas porventura justificável, na perspectiva de quem parece pretender instalar uma certa confusão no que reporta ao exercício daquilo que se pode hoje apelidar de justicialismo na política, naturalmente ao arrepio da designada legalidade institucional. Possivelmente, uma autonomia hiperactiva, de contornos muito pouco democráticos e, ao que é dado verificar, de consequências imprevisíveis.
Da soberania perdida na Europa, por ter sido retirada do centro da política, através da abdicação “…dos instrumentos de política que podem dar densidade material à autoridade política nacional”, segundo a opinião do investigador português João Rodrigues, até à imposição de uma autonomia artificial de um organismo como o MP, que deveria defender os interesses que a lei determinar, vai um passo muito curto, na denegação do virtuosismo e de uma certa “bondade” dos conceitos originais, particularmente no que se relaciona com o exercício da Democracia, que cada vez mais parece ser uma ilusão, porventura em vias de extinção.
E, por exigência factual, lembro o filósofo florentino Nicolau Maquiavel, que escreveu sobre o Estado e o governo como realmente são, e não como deveriam ser. E que a teoria política que ele vivenciou era, no fundo, uma política não democrática numa cidade cheia de conflitos internos e externos pelo poder e que sofria uma forte influência da igreja católica. São pontos de contacto terríveis, atendendo ao facto de ele ter vivido em pleno século XV.
O jornalista António Rodrigues escreveu, no passado 27 de Outubro, um artigo a que chamou “Bem-Vindos À Idade Média Versão 2.0” e em que, citando o jornalista israelita Gideon Levy, disse uma verdade que parece irrefutável, “este é um tempo obscuro”.
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