Só somos livres quando somos iguais

Inês Moreira dos Santos *

Só somos livres quando somos iguais, e não somos iguais. Nascer homem ou nascer mulher não é a mesma coisa. Nascer mulher implica nascer logo com uma série de exigências que não se aplicam aos homens. Nascer mulher ainda é visto como menos que nascer homem. “Vais tentar um menino?”, ouvi eu perguntar mais vezes do que o aceitável, aquando da minha terceira gravidez.

Se não nos arranjamos, somos desleixadas. Se nos pintamos, pintamos de mais. Se não nos pintamos, somos desmazeladas. Se vestimos saia acima do joelho, somos oferecidas. Se vestimos saia abaixo do joelho, somos pudicas. Se deixamos o cabelo ficar branco, somos feias. Se pintamos os cabelos brancos, somos vaidosas. Se nos deixamos ficar com rugas somos desleixadas. Se corrigimos as rugas com botox somos vaidosas. As mulheres, aconteça o que acontecer, são sempre culpadas. Se somos maltratadas por um homem, pusemo-nos a jeito. Se fomos violadas, era a mini-saia. Se fomos assediadas, queríamos subir na carreira. Se não somos assediadas, são feias e ninguém lhes pega. Se o marido nos engana, é porque não somos boas mulheres. Eu digo: chega de viver em função destes julgamentos que sempre virão, façamos o que fizermos.

Se uma mãe deixa de trabalhar para ficar com os filhos, têm falta de ambição. Se uma mulher trabalha e tem filhos, é despreocupada. As mães têm de trabalhar como se não tivessem filhos, e ter filhos como se não trabalhassem. O nível de exigência está para lá de alto. Mas o engraçado, sem ter graça nenhuma, é que esta expectativa não é igual para os homens.

Temos de corresponder a um padrão, senão ficaremos sozinhas com gatos, dizem.

Somos educadas neste caldinho, a ouvir críticas à nossa postura, que tem sempre, sempre, de ser corrigida, a ouvir criticar mulheres, seja por familiares, seja na tv, todas temos de cumprir qualquer coisa, que ainda ninguém percebeu bem. Seja fisicamente, seja intelectualmente, seja na maternidade ou na profissão: ninguém é bom de mais para escapar a esta sanha sedenta da auto-estima das mulheres. E depois crescemos a tentar atingir um padrão de beleza e de respeitabilidade – que ninguém sabe muito bem quais são – em vez de ficarmos contentes com o que temos. Se, no bingo da genética, calhou sermos altas, é porque somos altas. Se, no bingo da genética, calhou sermos baixas, é porque somos baixas. É desgastante. Existe toda uma indústria capitalista em torno disto: seja os anúncios de tv, seja clínicas de estética, seja as marcas de lingerie, seja aquela mãe xpto que vimos no instagram que faz ovos em forma de urso. A mulher é um boneco. Críticas a tudo. Temos de corresponder a um padrão, senão ficaremos sozinhas com gatos, dizem.

Este texto é uma ode as mulheres. Às mulheres chama, às mulheres asa, às mulheres força. A todas aquelas que se desdobram em várias. A todas aquelas que, sem ter consciência disso, valem muito mais do que algum dia alguém lhes disse. As mulheres que se esfolam para manter o mundo a girar. Que giram sobre o mundo, acossadas por uma exigência sobrenatural que não devia ser só delas. À saúde mental das mulheres, que se metem em segundo lugar. Os filhos sempre aprumados. A casa sempre impecável. Ser boa no trabalho, mas ser sempre menos que um homem em igual posição, ganhar menos, não se queixar. Se se queixam são histéricas. Ser submissas. Ser bonitas. Mas não muito bonitas. Ser femininas. Mas não femininas demais. Acordam mais cedo que o marido e os filhos para lhes arranjar a marmita, o saco da ginástica, o marido perguntou-lhes onde está a chave do carro. Um dia na pele de uma mulher. A todas as mulheres que fazem da resistência o mote para a sua vida.

As mulheres. Essas então não podiam sair de casa. Traziam a desgraça ao mundo se vestissem mini-saia e se fossem livres. A maneira hedionda de controlar mulheres, fazê-las crer que o seu desígnio era ser mãe e dona de casa. Que para ser bem comportadas tinham de ser fadas do lar. Que tudo o que se passasse em casa devia ficar em casa. Quantas vidas não se perdeu já por causa deste mito? Quantas vidas Salazar não nos deve? Quantas de nós não viram o seu futuro hipotecado por causa das vontades de um homem? Somos fruto da educação que tivemos. Somos fruto da educação que os nossos pais tiveram. Dos hábitos, das conversas que tiveram com os seus pais. A nossa educação começa muito antes de nascermos.

Se começarmos a unir-nos em vez de fazermos nós de juízes das outras, já é um passo. A sociedade patriarcal promoveu, desde sempre, a rivalidade feminina.

Nada se muda por decreto, isso sabemos nós. No Artigo 13.° da Constituição da República Portuguesa, referente ao Princípio da Igualdade, diz: Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei. Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual. Mas o que quererá isto dizer na vida prática das pessoas? Ainda para mais se nada altera na educação e na forma de estar?

Estas expectativas bafientas, e esta educação para esta expectativa, para a rivalidade feminina, para agradar a terceiros, que não nós próprias, sufoca. Existem várias ferramentas para combater as expectativa e a rivalidade e uma delas é a sororidade. Gostava tanto que começássemos a ver-nos como amigas, e não como rivais. Se começarmos a unir-nos em vez de fazermos nós de juízes das outras, já é um passo. A sociedade patriarcal promoveu, desde sempre, a rivalidade feminina. Esta competição evidencia o machismo existente na nossa sociedade, enfraquecendo a luta pela igualdade de género, a luta pelos nossos direitos. Há algo que precisa ser dito: não estamos a competir umas com as outras! Não precisamos disso na nossa vida. E chegamos mais longe se nos unirmos. Vivemos num sistema patriarcal, não há volta a dar a isto, e é por isso que precisamos de sororidade. Abaixo as tricas e intrigas, e seguiremos unidas! Abaixo o olhar de lado para outra mulher! Abaixo os julgamentos a outras mulheres! Não vivemos a vida de mais ninguém, só a nossa, o que sabemos nós acerca das motivações de outra mulher? Viva a empatia e o companheirismo. Viva a união entre as mulheres!

Operárias reprimidas pela Guarda Nacional durante a greve da indústria conserveira.

Uma mulher foi violada? Empatia e solidariedade. Porquê discutir a roupa ou o estado de sobriedade de uma vítima de um crime? Quando existe um crime, os holofotes devem estar sobre o criminoso. Uma mulher foi espancada? Empatia e solidariedade. Porquê discutir os porquês e desporquês de um crime? O criminoso, e nunca a vítima, é que cometeu um crime.

Já somos atacadas de diversas formas pela misoginia no espaço social, e até mesmo no espaço pessoal. A divisão não nos faz bem. Quanto mais separadas estivermos, mais dificil será fazer frente à violência de género, ir à conquista de mais direitos, espaços de poder e autonomia. Sororidade é isto. É a perceção que nós mulheres (todas) sofremos discriminações e violências que são determinadas pelo nosso sexo. Temos de nos unir. Temos de reivindicar todas juntas os direitos que sempre nos foram negados. A expressão máxima de sororidade é o movimento feminista, pedra de toque para avançarmos na conquista dos direitos femininos. A sororidade é uma forma de luta. A sororidade baseia-se no apoio mútuo, na compreensão, na empatia, na solidariedade, em perceber que as mulheres e as suas lutas vêm de diferentes locais. A sororidade é uma forma de luta contra a opressão do sistema patriarcal. O patriarcado ensina às mulheres que elas não devem e não conseguem ser solidárias umas com as outras, mas nós podemos mostrar a esse sistema patriarcal que condiciona toda a nossa vida que conseguimos fazer diferente do esperado. O 25 de Abril de 1974 foi, para as mulheres portuguesas, uma revolução dentro da revolução que foi. Abriu-se uma janela para a conquista de um lugar ao sol. Desta revolução não pode haver retrocesso.

About the Author

Ines Moreira dos Santos
* Nascida e criada no Ribatejo, rumou a Lisboa, e por lá se licenciou em Psicologia. Fez d´O Segundo Sexo o seu livro de cabeceira e do avô o seu herói. Mãe de três, ativista a tempo inteiro, colunista. Fascinada pelo mundo e pelas pessoas que nele habitam. Acredita na igualdade e sonha com um país onde se cumpra a Constituição.

1 Comment on "Só somos livres quando somos iguais"

  1. Bravo Inês. Parabéns pela reflexão e excelente texto

Leave a comment

Your email address will not be published.


*