Por José Antonio González Carrillo
Numa tarde de abril, a escutar timidamente a exígua chuva que brinda nesta primavera a Olivença, sustento a contemplação a folhear alguns dos exemplares que compõem a minha azafamada biblioteca.
Entre obras rubricadas por Castelo Branco, Eça de Queiroz, Pessoa ou Espanca, abrem-se ainda caminho nas prateleiras outros autores imprescindíveis para entender a progressão literária que foi experimentando a minha amada localidade e o seu entorno.
Pensamentos foram irradiados numa multidão de livros, artigos, opúsculos ou teses doutorais, inclusive em documentação efémera que se foi convertendo, nalguns casos, num compêndio bibliográfico de certo modo proscrito até há poucas décadas.
Estes recantos literários são um dos motivos que propiciam ou meu doentio colecionismo, sempre tematizado com documentos ou livros que façam referência a Olivença. Desta maneira, uma simples resenha à histórica vila alentejana serve como pretexto para a sua compra ou aquisição.
Na minha pessoal antologia oliventina coabitam autores, pensadores e investigadores de índole local, junto doutros de amplo reconhecimento sob o influxo da língua de Camões, como José Saramago, Alexandre Herculano, José Hermano Saraiva e, claro, Agostinho da Silva, com a sua ética da renúncia e os seus valores para a liberdade. Este imortal pensador também pôs o seu interesse em Olivença nos seus últimos anos de vida, tornando-se firme impulsor do projeto de união que para ele representou sempre esta terra.
Dalguma forma, igual que este intelectual, personagens históricas ou matérias tam díspares como D. Manuel I, o lisboeta terreiro do Paço, as Misericórdias, a guerra de Aclamação, Pedro Álvares Cabral, o oceano Atlântico ou as consequências do cruento mês de novembro de 1755 se unem também para complementar a própria história oliventina.
Voltando para a aprazível visão que me produz a contemplação destas obras, a minha pupila se dilata agora ao contemplar algumas lombadas ornamentadas com doirados seculares. Desta maneira, detenho a minha visão num exemplar fac-símile do “Introdutione facilissima”, de Vicente Lusitano, oliventino enjeitado que no meio do século XVI, por obra e graça da cátedra de canto instituída na localidade, pôde fluir na criatividade e potenciar o seu talento musical. Os seus revolucionários enfoques teóricos chegaram a criar um cisma musical em toda a Europa. A imponente tese doutoral realizada por Barbosa Machado sobre o músico referido, injustamente desdenhado hoje, é sem dúvida uma das grandes obras dos finais do século XX sobre este particular “entorno oliventino”.
Junto destes dois imponentes livros, em caixas de conservação, são custodiados catalogados diferentes relações e factos ocorridos em torno de 1640, onde cronistas da época como o cónego Aires Varela convidam com os seus relatos a despertar a imaginação descrevendo as cruentas batalhas e escaramuças que foram livradas nos cercos à vila durante aquele transcendental período.
De igual forma, empilham-se outras obras cunhadas no século XVII, desta vez em nome do poder eclesiástico, que por então se encarregava de definir as suas propriedades e rendas cedidas depois da mudança de bispado na localidade. Assim, uma parte dos territórios que engrandeceram a diocese de Ceuta, assentada neste lugar por frei Henrique de Coimbra, passam agora para as mãos da jurisdição do bispado de Elvas. Sob o frontispício rubricado por António Gonçalves de Novais em 1635, põe-se nova ordem aos tempos que estavam por chegar. As afamadas oficinas e impressões da família Craesbeeck encarregam-se de dar ornato a esta nova ordem religiosa.
Diferentes epítomes e biografias são impressos durante o seguinte século, como as denominadas obras de condição hagiográfica, onde são narradas as magnificências de uma jovem oliventina que chegou a ser venerada em santidade pelo conjunto da ordem franciscana. Luzes e sombras de uma época onde o pensamento ia vendo a luz face ao obscurantismo do credo.
Germinam assim a prosa e a poesia, com autores nascidos nas ruas e terreiros deste lado do Guadiana, imortalizando as suas obras com os versos mais atrevidos que foram gestados por aquele então e que serviram de vanguarda para o que estava por chegar. Desta maneira, o oliventino Caetano José da Silva Souto Maior, o “Camões do Rossio”, gradua-se em direito e gramática, promove a Academia Portuguesa da História e consegue publicar milagrosamente uma das obras irreverentes mais conhecidas, “A martinhada”, que o elevará para sempre na memória coletiva portuguesa.
Obras de autor dão conexão intelectual à criação e convivem com imponentes corografias difundidas em todo o reino, como a belíssima edição da “Geografia Histórica de Portugal”, publicada nos anos trinta do século XVIII e que narra à perfeição a riqueza material e social que entesourava a localidade naquela época.
Os séculos XIX e XX trarão a esta terra uma aposta bibliográfica sem precedentes; desde os impávidos tratados e teses diplomáticas que mudaram o destino dos oliventinos de então até a subtileza das aguarelas de Alberto Sousa, perpetuadas no livro “Olivença”, junto a Matos Sequeira e Rocha Júnior. Sem dúvida, um dos livros mais belos escritos sobre a localidade junto do livro de viagens “Três dias em Olivença”, de Hermano Neves, publicado poucos anos depois.
E assim, até chegar a um dos privilegiados filhos de Olivença, Ventura Ledesma Abrantes, injustamente esquecido hoje.
Ventura foi promotor editorial da sua “Livraria oliventina”, na rua do Alecrim de Lisboa, de diferentes obras de António Egas Moniz e Camilo Castelo Branco; foi acérrimo tertuliano com personalidades da estatura de Teófilo Braga ou Sousa Sardinha. Impeliu a Universidade Livre e foi fundador da feira do livro na capital portuguesa. Entre os seus inumeráveis méritos também está escrever a mastodôntica antologia intitulada “O Património da Sereníssima Casa de Bragança em Olivença”. Firme defensor da identidade portuguesa de Olivença, a sua dilatada contribuição foi decisiva para que ainda hoje se possa preservar o património imaterial desta localidade.
Este breve percurso literário oliventino, materializado na escusa da contemplação, poderia ser encerrado com a leitura pausada de qualquer uma das obras mencionadas, sob o tranquilo repouso ao qual convida um pôr do sol das pedras que serviram no seu dia como baliza fronteiriça deste ponto geográfico.
Desta perspetiva, a olhar para o oeste, vamos poder verificar como começava (o acabava) o esplendor das conquistas ultramarinas, “Os Lusíadas” de Camões, o empenho restaurador, a construção da cisterna de Mazagão ou as majestosas pinceladas que refletiu nas suas tábuas Gregório Lopes. Todo o Portugal e o seu pensamento de certo modo também partiram daqui.