Pão para Azevedo

São muitos e variados os casos de dedicação e desprendimento que podemos encontrar na vida social. Alguns são verdadeiros exemplos, que nos garantem que ainda existem pessoas e entidades que vale a pena citar e incentivar, para que as práticas deles possam servir de exemplo às autoridades e administrações, por vezes preocupadas com aspectos formais e pouco atentas ao que se passa à sua volta. Constituem, uns e outras, verdeiros territórios de esperança, de imaginação e de solidariedade. São organizações de variadas tipologias, associações, cooperativas, mutualistas e outras que proliferam no nosso País, muitas vezes sem sequer terem existência formal, que deveriam merecer o devido destaque, em tempos de indiferença, em que a propaganda e o espectáculo parecem ser mais importantes que a realidade que nos cerca. Que é a nossa, afinal.

Por Alfredo Soares-Ferreira

Pão Para Azevedo?

Azevedo é nome de lugar, na freguesia de Campanhã, Porto. É ainda hoje uma zona com um cenário rural, com muitos problemas estruturais desde há décadas, com um baixo nível de densidade populacional e com elevadas taxas de desemprego. A zona foi classificada, em 2019, como território de acção prioritária, pela Câmara Municipal. Em meados dos anos 70 do século passado, nos primeiros tempos após a Revolução, havia um grupo de jovens do Bairro do Lagarteiro que gostava de jogar futebol. Na falta de dinheiro e de tudo o resto, restava-lhes imaginação criativa e alguma vocação social também. Decidiram criar um grupo e pedir o apoio de uma pequena padaria que era conhecida como Padaria Popular de Azevedo. Utilizando alguns trocos para equipamentos e bolas, o grupo ostentava a designação PPA nas camisolas, que dava para o nome da padaria, mas também para chamar a atenção de um pequeno projecto social, que se destinava a angariar pão para famílias mais carenciadas. Daí o Pão Para Azevedo. (*)

Por esse Porto dentro

Centenas de organizações sociais, associações e outras, que sem se alardearem disso, se afirmam pelo cuidado ao cidadão, do mais vulnerável ao incapacitado por razões médicas ou outras. Existem entidades sociais em que a diversidade vai de ludotecas e bibliotecas, ao apoio à vítima, passando pela integração de pessoas em risco social em casas de acolhimento, pela promoção social de certos bairros, pela prestação de serviços jurídicos a vítimas de abusos sexuais, maus-tratos, violência doméstica e tráfico de seres humanos.

Mas há mais exemplos, valeria a pena criar um roteiro para elas. Citemos o caso do MIRA Fórum. O MIRA, artes performativas é uma associação, um verdadeiro centro cultural, nascido no Porto, precisamente na freguesia de Campanhã. Uma das iniciativas marcantes do MIRA foi a publicação do Mapa Emocional de Miraflor, que fez parte do programa Cultura em Expansão, da Câmara Municipal do Porto, apresentado em Dezembro de 2018. Segundo os próprios, Manuela Matos Monteiro, e João Lafuente, “Propusemo-nos continuar a construir esse mapa humano com mais testemunhos, com mais histórias alargando o território para as ruas do Freixo e da Estação formando assim um envolvente anel feito de ligações de vizinhança e de cumplicidades várias.” O objectivo do projecto foi “…proceder à recolha das memórias relativas ao passado, mas ao mesmo tempo o registo das novas formas de viver a rua seja pela chegada de novos habitantes, seja pela reformulação de práticas sociais

As organizações sociais criam redes de partilha e de afectos, ensaiando muitas vezes dinâmicas de aproximação de pessoas, sobretudo quando existe um denominador comum entre elas. Tentam combater círculos de exclusão social, numa lógica preventiva, possibilitando a grupos de crianças e jovens oriundos de contextos vulneráveis a construção de um outro percurso de vida. Procuram desenvolver actividade de protecção social, em áreas diversificadas, como a da segurança social e da saúde. De uma forma geral, essas entidades procuram promover a cultura e a melhoria da qualidade de vida dos associados, dos familiares e, em muitos casos, dos cidadãos em geral.

Por esse País fora

A edição do passado mês de Maio do Le Monde Diplomatique, versão portuguesa, dá conta de um projecto muito interessante da associação Mulheres na Arquitectura, em Aveiro, designado Mulheres em Construção! Trata-se de um projecto ecofeminista, destinado a apoiar o emprego feminino no sector da construção civil. E sendo este sector, conforme o artigo “…uma área predominantemente masculina, procura-se desconstruir estereótipos e valores perpetuadores de desigualdades ainda presentes nos contextos de contratação e trabalho neste sector. A abordagem à igualdade de género, mais do que ambicionar o domínio de conceitos complexos, estende a reflexão às experiências de vida, ao quotidiano e ao processo formativo. Tal enfoque ofereceu ferramentas de auto-identificação entre as formandas e a unidade nasceu da partilha de histórias — e de violências diversas —, bem como da aprendizagem sobre como lidar com as diferenças.” Este projecto visa, segundo as autoras da peça, “… a capacitação e autonomia na melhoria de condições das suas casas e a procura de emprego em áreas do sector da construção civil…” e engloba formações profissionais das diversas especialidades e também formação em igualdade de género e literacia digital. O projecto prevê igualmente uma “obra de reabilitação de uma loja do bairro” e também a“…criação de um banco comunitário de materiais e ferramentas.”

Ao mostrar novos caminhos e novas perspectivas de abordagem, quer a nível da concepção das relações de trabalho, quer ainda na participação directa na produção de bens e serviços, estes projectos adquirem uma dimensão e um impacto social assinaláveis.

O estado do Estado

A verdade é que deveria ser o Estado a primeira instituição a cuidar dos cidadãos. Todas e quaisquer referências, ou mesmo distinções, a entidades sociais, não significam de forma alguma que seja a elas que cabe o cuidado referido. Fazem, e muito bem, o seu papel, mas não substituem (nunca o poderiam fazer) o Estado.

Segundo dados do Instituto Nacional de Estatística (INE) e da Pordata e de 2018 a 2021, o nosso País tem uma taxa de pobreza de 18,4% em 2020, um valor que representa um acréscimo de 2,2 pontos percentuais em relação a 2019. Nesse ano de 2020, “…a intensidade da pobreza (que avalia quão pobres são os pobres) subiu cerca de 2,7 pontos percentuais, de 24,4% para 27,1%, traduzindo assim que a situação da população igualmente se agravou face ao ano anterior.” Um valor também a atentar é este, indicado pelo INE: “…o valor do percentil 10 (a fronteira que separa os rendimentos dos 10% mais pobres das restantes famílias) diminuiu cerca de 7% evidenciando uma forte retração do rendimento das famílias mais vulneráveis.” Um outro dado em ter em consideração é o que se refere ao risco de pobreza e de exclusão social, cujo valor, em 2019, “…era 21,6%, sendo mais acentuado nos jovens (30,3% na população entre os 15 e os 19 anos e de 25,8% na população dos 18 aos 24 anos)”. Os números da desigualdade em Portugal continuam muitos altos. Em termos da designada União Europeia, o nosso País era, em 2019, o oitavo país mais desigual, com um valor do coeficiente de Gini (indicador que mede o nível de desigualdade) de 31,2%. Não deixa de ser assustador, entretanto, constatar, ainda segundo as fontes e os dados referidos, que “A proporção de crianças e jovens vivendo em situação de pobreza atingiu, em 2020, o valor de 20,4%, tendo-se registado um acréscimo de 1,3 pontos percentuais face ao verificado no ano anterior. Na população idosa a incidência da pobreza registou um acréscimo mais expressivo de 2,6 pp, fixando-se em 2020 nos 20,1%.

Num quadro como este seria de todo aconselhável que as autoridades responsáveis cuidassem decididamente em resolver os problemas identificados e activassem medidas imediatas para os resolver. Talvez fosse mesmo de aconselhar o Primeiro-Ministro a visitar locais problemáticos, como hospitais e unidades de saúde, por exemplo. A preocupação que tem demonstrado com uma conhecida guerra deveria ter, no mínimo, a equivalência nas gravíssimas condições de degradação de serviços públicos, onde o seu governo se recusa em investir, ao mesmo tempo que se dedica a investir, sem qualquer auscultação ao seu País, na referida guerra. Convém referir, a propósito, que o pulsar antidemocrático contra instituições que pensávamos perfeitamente consolidadas na sociedade portuguesa, como o Serviço Nacional de Saúde e a Segurança Social, pilares do estado democrático e suportes dessa figura comum que se pode designar por cuidar dos cidadãos, tem muito a ver com o “esquecimento” a que foram (e continuam a ser) votados. Há sempre um preço a pagar, e 250 milhões de euros poderia ser decerto um bom começo…

E o pão?

O pão, a saúde a habitação, que estão ao lado da paz, numa conhecida canção, continuam, ao que parece em lugar subalterno, na ferocidade insana do sistema neoliberal. Claro está que a aparência de liberdade, hoje brandida pelo ocidente como propaganda mediática, existe e deixa de existir quando melhor convém. A única que continua a existir é a liberdade para explorar quem trabalha. A canção, é sempre bom lembrar, diz que “…Só há liberdade a sério quando houver /Liberdade de mudar e decidir/Quando pertencer ao povo o que o povo produzir“.

Mas isso hoje, infelizmente, parece que conta muito pouco. O que conta é o pragmatismo. A propósito, à laia de informação, a padaria de outrora deu lugar a uma pizzaria. Não lhe é conhecida qualquer iniciativa social.

(*) Nomes e designações propositadamente adaptados

About the Author

Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.

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