O prenúncio do mal (a serpente e o ovo)

Alfredo Soares-Ferreira *

A conhecida alegoria da serpente consubstancia-se na ideia de que, do processo de incubação, poderá eclodir um monstro potencial. Será, nessa perspectiva, que a essência do “mal” pode ser evitada com a destruição dos ovos. Terá sido uma serpente a responsável pela sedução de Eva, consequentemente a origem do pecado original, na tradição bíblica, a maçã, simbolizando o conhecimento proibido. Todavia, é preciso notar a ambiguidade da serpente, que é um animal mágico, símbolo da iniciação e da sabedoria para certos povos, ou uma associação com a origem da vida, para outros.

Existe um valor simbólico inerente a concepções mágicas e religiosas, que serve para expressar significados reais e abstractos, usados e codificados nomeadamente na comunicação e na informação. É decerto o caso da asserção “ovo da serpente”, que é associada quase sempre ao título do filme de Ingmar Bergman, de 1977 e que relata a ascensão do nazismo na Alemanha, nos anos trinta do século passado, num período histórico de uma enorme instabilidade política, fruto de crises permanentes e da falta de perspectivas de futuro. Mas aquela asserção remonta ao século XVI, quando Shakespeare a ela se refere, dizendo que o ovo chocado, por sua natureza, se tornará nocivo e que devemos, portanto, destruí-lo enquanto está na casca.

Acontece que o discurso de ódio, de intolerância e de xenofobia na Europa actual, pode desembocar em crimes de ódio reais que já destruíram e ceifaram a vida de muita gente.

Quando hoje vemos eclodirem casos extremos de violência em ambientes de guerra e de cenários semelhantes, ficamos a pensar do que é capaz o ser humano, quando instigado por interesses bélicos, ou de propaganda insidiosa. Ao ver a crueldade das tropas de Israel a matar a sangue-frio crianças e mulheres em busca de comida, não podemos perdoar. Ao ver aquele ataque sangrento em Moscovo, onde morreram mais de cem pessoas, não podemos também perdoar. E ficamos a pensar o que haverá por trás disto. E temos o legítimo direito em pensar se poderá existir uma mão misteriosa que personifica o “mal”. E que poderá estar bem perto de nós, representado, simbolicamente ou não, no poder enfático dos senhores da guerra e do dinheiro, aos quais são perfeitamente indiferentes o sofrimento e a morte. Nos dois casos, há sempre o outro lado. No primeiro, a velha e gasta sentença de que o Estado israelita tem de se defender, aliada à hipocrisia dos que apoiam tudo o que vem “daquele lado”, mesmo que na praça pública critiquem os “exageros”. No segundo, a tese obtusa que foram os serviços secretos russos que fizeram o ataque terrorista em Moscovo, aliada a uma outra, de igual pendor, de que terá sido uma forma de chamar a atenção para uma nova escalada da guerra.

O filósofo francês Gérard Granel, fundador da Trans-Europ-Repress, uma editora que publicou diversas obras da filosofia clássica, tentou mostrar que a classe política europeia foi manifestamente cega perante o fascismo em Itália, o nazismo na Alemanha e o estalinismo na União Soviética, três pilares que classificou como políticas destruidoras, causadas por um processo que designou por “infinitização” e mobilização total de todos os aspectos da vida social. Estas declarações, verdadeiramente proféticas, foram feitas em 1990 numa conferência na New School for Social Research de Nova Iorque, sob o título “Les années 30 sont devant nous” e foram recentemente reportadas num artigo de opinião do cronista António Guerreiro, no Jornal Público, a 19 de Janeiro passado, sob o significativo título “Um espectro assombra a Europa”. Parece hoje evidente que, nesta Europa em que a ausência de pensamento é assaz preocupante, se acentuam sinais de cegueira que podem levar à autodestruição, com todas as consequências que daí advêm.

Imagens: O Ovo da Serpente, Bergman, 1977.

A filósofa política alemã Hannah Arendt escreveu e teorizou sobre o “mal”, particularmente no que reporta à sua banalidade. Todavia, a autoria do conceito “banalidade do mal” deve ser assacada ao seu segundo marido, o poeta e filósofo alemão Heinrich Blücher. É sabido que a Autora fez questão de estar presente no julgamento do nazi Adolf Eichmann, em Jerusalém, no ano de 1961. Terá aí constatado a total ausência de pensamento de um dos maiores criminosos da sua época, indo ao ponto de constatar a sua “normalidade”, no sentido de uma “mediocridade”, quando se declarou inocente, por que apenas cumpria ordens superiores. Arendt sentiu-se então confrontada com uma nova, até então desconhecida, forma do mal, não o “mal radical”, filosoficamente falando, mas um mal diverso, que advirá da circunstância de o ser humano perder a capacidade de compreender e ter em consideração a posição do outro, uma incapacidade absoluta de pensar. Esta nova forma de entender o “mal”, leva a considerar em Eichmann, não o criminoso assassino, mas o assassino-burocrata que apenas cumpre ordens superiores.

A questão principal com que as sociedades ocidentais, tidas como “exemplo”, com um “modo de vida próprio” a ser preservado, como tem sido incessantemente dito a propósito da guerra da Ucrânia, nós de um lado, eles (os russos) do outro, contém este tipo de discurso medíocre e tremendamente banal. Contudo, é este mesmo discurso que se constitui em discurso de ódio que tem sido “protegido” e “alimentado” por governos, Estados e por uma comunicação social alarve e subserviente. Acontece que o discurso de ódio, de intolerância e de xenofobia na Europa actual, pode desembocar em crimes de ódio reais que já destruíram e ceifaram a vida de muita gente.

Voltando ao filme de Bergman, concluímos, no mínimo, ser urgente não voltar a cair nos mesmos erros de esperança em salvadores da Pátria egocêntricos e racistas. No enredo da estória, havia um laboratório onde faziam experiências proibidas com seres humanos. Na vida, há “experiências” que se devem evitar, nomeadamente a de “chocar ovos de serpente”, ou, em tradução literal, normalizar grupos marginais que vão nascendo e crescendo à vista de todos.

About the Author

Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.

Be the first to comment on "O prenúncio do mal (a serpente e o ovo)"

Leave a comment

Your email address will not be published.


*