Por Alfredo Soares-Ferreira *
Um exercício possivelmente interessante a fazer, hoje e em qualquer circunstância, é olhar e tentar ver o outro lado. Olhar para o outro lado do rio é tentar observar que o que lá está não é exactamente o mesmo do lado onde nos encontramos. Nem que possa parecer que é igual, haverá sempre qualquer pormenor distintivo que o torna diferente. É afinal, o outro lado.
O exercício pode ser assaz simples e, ao mesmo tempo, complexo. O “ver para crer”, na posição simplista atribuída ao santo, que seguia Jesus para todo o lado, apresenta uma plástica eivada de retórica e reduzida à expressão mínima, só vendo é que acredito. A complexidade do exercício é porventura resultado da exigência. O rigor deverá ser capaz de nos levar um pouco mais longe, afinal é a inquietude humana, hoje algo vilipendiada, que assim o determinará, na procura constante de desequilíbrios no pensamento, que determinam a diversidade e a pluralidade. Contudo, há quem nem precise de ver, para acreditar, bastando-lhe para tal a opinião abalizada do outro, que vê mais longe, tão longe que é capaz de ver por todos os outros. Estes mestres do “conhecimento” são os mesmos da “informação” e podem encontrar-se, facilmente disponíveis, nas agências governamentais e para-governamentais, com a garantia que estão sistematicamente do “lado certo”, porque, na verdade, não conhecem qualquer outro, uma limitação deliberada e consciente de que o “seu lado” é o único que existe.
O outro lado aparece sempre como uma espécie de “lado oculto”, do qual, à partida, convém saber-se o menos possível. Seja porque não existe um volume de informação suficiente, considerado disponível, ou porque se pensa poder existir, naquele lado, uma ameaça latente. Em ambos os casos, a atitude parece ser a de tentar manter o cidadão comum prudentemente “afastado”. E a melhor forma de o fazer é fornecer-lhe um pacote contínuo de receita informativa, devidamente formatado. A partir daí, existem procedimentos conhecidos, práticas reconhecidas, para instalar uma espécie de teia, que advém do bombardeamento constante de frases feitas e notícias seleccionadas, muitas vezes falseadas, destinadas a instalar nas consciências, sentimentos de medo e um mal-estar declarado, na assumpção da insegurança que lhe está associada. É relativamente fácil conseguir um estado de espírito manipulado, através de uma sucessão de emoções, que irão determinar atitudes e decisões, unicamente com base nelas e nas suas determinantes.
Em ambos os casos, a atitude parece ser
a de tentar manter o cidadão comum
prudentemente “afastado”
Se, por exemplo, a preocupação fosse mobilizar a opinião pública contra a violação do direito internacional, plasmada na Carta das Nações Unidas, cometida pelo invasor russo, então seria de esperar a mesma reacção, uma justa reacção, contra as sucessivas violações perpetradas muito especialmente pelos useiros e vezeiros habituais, com particular destaque para EUA e NATO, em todos os continentes e, muitas vezes, de forma bárbara. Como é particularmente claro que a intenção não é essa, resta apenas a única hipótese plausível, que é, na verdade, um ataque frontal, há muito desenhado e devidamente preparado, ao invasor da Ucrânia. Esse ataque é hoje, só e apenas, a continuidade de um trabalho de sapa, levado a cabo, desde a queda do Pacto de Varsóvia e intensificado a partir de 2008. E, para quem provavelmente se surpreenda com o abandono da Rússia do acordo para a limitação do nuclear, lembra-se aqui a posição dos EUA no que reporta a tratados internacionais. Utilizando como fonte a história recente das duas últimas décadas, regista-se a saída da UNESCO, no ano de 2017, situação igual a do ano 1984. Em 2017, os EUA anunciaram à saída do Acordo de Paris sobre mudanças climáticas. No ano seguinte, participaram a saída do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas, a propósito de Israel. Em 2019, retiraram-se do Tratado de Forças Nucleares de Alcance Intermediário, para poderem prosseguir o “trabalho” armamentista, sem controlo. E finalmente, em 2020, abandonam o designado Tratado de Céus Abertos, para a vigilância militar.
Os mandantes directos do nosso País, Primeiro-Ministro e Presidente da República, coadjuvados pelo Ministro dos Negócios Estrangeiros, que se comporta como um delegado tarefeiro da NATO, acabam de declarar, para todos os efeitos, a guerra à Rússia. A decisão do envio de tanques, a primeira na Europa e as palavras de Costa, “A paz só é possível com a vitória da Ucrânia e a derrota da Rússia”, são perfeitamente claras nesse sentido. É, sem qualquer sombra de dúvida e de uma forma assumida, um envolvimento directo no conflito.
A atitude do PR ao propor uma condecoração nacional ao presidente ucraniano, completa o cenário, mesmo que seja vista como um símbolo do ridículo, ou mesmo da costumeira parolice nacional. Mas não é, na verdade, a primeira vez que os responsáveis máximos do País, o colocam numa situação de ponta de lança da guerra. Em 2003, Barroso comandava as tropas, nas Lajes, para a invasão do Iraque, com o conhecido pretexto das “armas de destruição massiva”. Ontem, como hoje, a mesma atitude, subserviente e guerreira.
Não deixa de ser curioso o papel de um país que promoveu uma guerra colonial em África, de contornos e consequências conhecidos, e se tenha libertado do regime opressor que a promoveu, esteja hoje em situação de instigação permanente de guerras, comandadas por mandatários indignos, na definição da escolha do lado da guerra, sem qualquer sentido crítico e, ainda por cima, colocando à disposição os meios e recursos que nega aos seus concidadãos, que continuam na cauda da Europa, em matéria de rendimentos e condições de vida.
O outro lado do espelho foi retratado por Mr. Charles Dodgson, ou seja, Lewis Carroll, seguindo a aventura de Alice, no designado “País das Maravilhas”, que existia certamente na mente do Autor. A ideia era tornar Alice uma rainha, num tabuleiro de xadrez, pela sua postura positiva, altiva e interveniente. Mesmo que o mundo do “outro lado”, dominado pela imaginação, seja povoado de seres tão estranhos quanto enigmáticos e o simbolismo nos possa distrair da realidade, o certo é que esta pode ser uma “desolação total”, como dizia Yeats. E, na verdade, num país como o nosso, as maravilhas são apenas para alguns, muito poucos, ao fim e ao cabo, eles que são a imagem de quem pode ter certezas, a saber, os seus privilégios raramente são atacados, antes pelo contrário.
Será certamente de duvidar de quem tem todas as certezas. O lado de “todas as certezas” é, sempre foi, um lado perigoso. Seja em termos de retórica, seja no plano da prática política, é um lado a evitar. Uma curiosa coincidência tem a ver com a atitude paternalista dos que clamam contra uma putativa ameaça nuclear e se entretêm, há anos, a acumular nas fronteiras do vizinho, um arsenal nuclear, que cresce à medida que falam e dizem.
O que determina, em primeira instância, o colapso das democracias tradicionais, é, em primeiro lugar, a atitude política pura e dura, dos lugares-comuns que empobrecem o debate político e que marcam o sentido das sociedades onde campeia o desperdício, a indignidade e a falta de alternativas. Onde, o outro lado é, desgraçadamente, sempre o mesmo lado.
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