O “não-saber” é uma atitude

Alfredo Soares-Ferreira *

A capacidade de reconhecer que existem culturas diferentes, que deveriam merecem todo o respeito costuma ser designada pelo termo alteridade. Será eventualmente um passo importante na construção de uma sociedade mais justa e mais democrática. Existem na contemporaneidade algumas experiências de alteridade, por vezes desqualificadas, para contrariar a hegemonia de um tipo de saber dominante, que se baseiam substancialmente na incerteza e na perspectiva socrática do “não-saber”. Assim se constitui porventura uma poderosa fonte de descoberta.

O tema vem a propósito de uma excitante exposição, patente na Estação de metro de S. Bento, no Porto, com o título “L’École Du Non-Savoir”, ou “A Escola do Não-Saber”, que reúne obras de autores internacionais ligados ao design gráfico e foi apresentada no âmbito da Porto Design Biennale, de 21 de Outubro a 3 de Dezembro de 2023. O Autor é o designer franco-suíço Ruedi Baur, que lecciona na Universidade de Arte e Design de Genebra, na Escola de Artes Decorativas de Paris, na Luxun Academy Shenyang de Pequim e na International School of Percé do Quebec. A ideia original parte de um “conjunto de imagens que exploram a ideia de uma escola onde se trabalha aquilo que não sabemos, em vez daquilo que sabemos” e reúne trabalhos de estudantes de mais de 30 escolas e universidades internacionais, tendo como finalidade “transmitir conteúdos simples ou complexos dos quais não temos conhecimento”. São, no entender de Baur, conteúdos perdidos ou ignorados, “…grandes mistérios das nossas sociedades, mas também daquilo que poderemos descobrir no futuro no campo das ciências humanas, das ciências políticas e das ciências exactas”.

Ruedi Baur

A questão da representação está patente na Exposição. Na verdade, o trabalho de fundo do projecto é a representação do não-conhecimento, “…na convicção de que o diálogo entre as artes, o design, a ciência e a sociedade pode abrir novos horizontes para a compreensão e a apreensão de mundos conhecidos e ainda por descobrir”. A ideia será, com base numa abordagem interdisciplinar, poder questionar, “…a partir de diferentes pontos de vista e de diferentes pontos de partida, a nossa relação com o conhecido, o desconhecido, o escondido e o enterrado, e questionar tanto as representações como as formas de transmissão do não conhecimento”. Onde não são esquecidas as questões da actualidade, como a linguagem e a cultura, a história e o futuro, as tecnologias e a ciência, as migrações e as religiões, o Oriente e o Ocidente. E ainda o objectivo e o imaginário na representação do mundo.

Afinal a realidade é, ou pode ser, enganosa, o mundo não é só o que os olhos vêm, a imagem substitui o objecto, tudo parece relativo.

Uma das questões emergentes do novo século situa-se no eventual poder do não-saber. Quer porque vivemos um tempo de incertezas, quer ainda porque os avanços da técnica e das tecnologias não foram suficientes para garantir, nem mais igualdade, nem mais justiça social. A possibilidade de trabalhar aquilo que não sabemos, em vez daquilo que sabemos, poderá conduzir-nos ao desenvolvimento de narrativas próprias para transmitir conteúdos simples ou complexos dos quais não temos conhecimento. Como por exemplo, nas propostas da Escola do Não-Saber, para explicar coisas que foram esquecidas, ou que não foram descobertas, ou ainda para determinadas temáticas ou assuntos não-convenientes.

Quando José Saramago diz, no “Ensaio Sobre a Cegueira”, “Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara”, está de certa forma a enfrentar o desconhecimento e a suscitar todas as possíveis dúvidas, interrogações, e contradições da sociedade, particularmente numa situação de caos, em que as pessoas são transformadas em seres que lutam pela sobrevivência, face à desorganização ou à desestruturação sociais. Porque afinal a realidade é, ou pode ser, enganosa, o mundo não é só o que os olhos vêm, a imagem substitui o objecto, tudo parece relativo.

Imagem da expo A Escola do Não-Saber, no metro do Porto.

E aqui se pode colocar de novo a ideia de “representação”, centrada em conceitos do domínio do imaginário, como o mito e a memória, a utopia e a ideologia. O influente pensador do final do século XX que mais e melhor trabalhou sobre as “representações” foi o filósofo francês Cornelius Castoriadis, o Homem da “autonomia” e do grupo Socialismo ou Barbárie. Na sua obra “L’Institution imaginaire de la société” de 1975, o Autor levanta a questão da possibilidade efectiva de transformação social, afirmando que a história fez nascer um projecto que é o nosso, pois nele reconhecemos as nossas mais profundas aspirações, e pensamos que é viável, neste espaço e neste tempo. E ainda, que a transformação passa pela questão do instituinte e da autonomia, instâncias possivelmente de um qualquer contra-poder. 

Uma das melhores proposições de Ruedi Baur, sobre a sua exposição, foi, sem qualquer dívida que “cada imagem é em si mesma uma afirmação, e o nosso sistema educativo ensina-nos a persuadir em vez de questionar”. Associar hoje a transformação à necessidade premente de dotar a Escola dos instrumentos necessários de contra-poder é o mesmo que “fundar” uma nova escola baseada na mediação e na desconstrução. E se ela quer ser o contraponto entre “saber” e “não-saber”, de forma a tornar o “não-saber” como atitude.

Se fosse possível reconhecer o que não sabemos encontraríamos decerto a melhor forma de combater uma eventual “ignorância” e desencadear, a partir daí, um processo contínuo de aprendizagem.

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Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.

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