O imigrante ideal

Alfredo Soares-Ferreira *

Parece existir uma mágoa imensa na voz de quem prega hoje sobre uma figura, com vagos contornos emocionais, que finge ser o que não é. Ou que é mesmo, e é plasmado em algumas declarações que mais valera nunca terem sido feitas, para a desgraça de quem as fez. O presidente da Câmara que diz não aceitar lições de ninguém é o mesmo que aceita de barato os recados que lhe mandam e que não é responsável por nada a não ser pela sua incompetência. Tido como figura de proa, para um putativo lugar de destaque no Partido, ei-lo a navegar, sem vela nem remo, à mercê de uma maré nada favorável. E o presidente desse Partido, que nem sequer navega, pois que lhe falta tudo para se fazer ao mar encapelado e, para ele, muito confuso, da coisa política. O mentor está porventura ali ao lado a bater palmas de contente, não se importando com os sucessivos plágios à sua “doutrina”.

É um fartar de vilanagem, uma apoteose de disparates, assim classificados, por mera falta de crédito dos pensantes. Que, ou pensam coisa nenhuma, ou pensam sucessivamente mal e nem sequer param para pensar, como seria aconselhável.

Será então que se pretende desenhar um hipotético perfil do imigrante ideal, uma espécie de desvio da norma que deveria encaixar na estrutura, já de si semi-enviesada, de um modo de vida que nos pretendem ter como padrão? Se é ou não uma contradição a forma de ver (ou de viver) a causa imigrante, pouco importa. Sabendo que o momento é agora, e que agora urge atacar qualquer coisa que mexa, aquelas mentes que proferiram as declarações de que falámos, cientes do “pouco importa” e prenhas de amor ao imigrante puro, caem num ridículo tão claro, que assusta e ensombra as suas próprias consciências.

A acrimónia do Partido do Governo contra a Direita, agora unida, como tão bem sabe quando se trata de questões como esta, é apenas uma suave música para ouvidos menos atentos. As palavras de Ana Catarina Mendes, que representou o Executivo no congresso da organização racista e xenófoba, são tão belas, quanto vazias de conteúdo, “A melhor forma de podermos cumprir a igualdade é continuar a construir um país aberto, inclusivo e inovador“. Esta afirmação, bem como outras semelhantes, contrasta por completo com a atitude complacente e mesmo cúmplice, na situação dos imigrantes em Odemira, onde viviam em 2020, quase dez mil imigrantes, em condições degradantes e onde, um ano depois, pouco ou nada havia mudado, naquele que é o maior concelho do país em território e onde tem subido o número de imigrantes, que “…vivem em casas sobrelotadas e trabalham horas a fio, de sol a sol, debaixo do calor das estufas para, ao final do mês, terem um baixo salário”, segundo sucessivos relatos de alguns órgãos de informação.

Se em parte se compreende que cada país tenha a sua especificidade própria, no que toca a uma política de migrações, o que é certo é que a designada União Europeia tem sido tudo menos exemplar no que reporta à matéria de facto, bem como aos princípios que norteiam o fenómeno das migrações. Aliás, de cada vez que a UE intervém, as divergências entre Estados vêm ao de cima e aumentam os riscos de insegurança, ao mesmo tempo que causa vergonha pública a posição dos líderes europeus face aos refugiados de certos países, a que a UE não presta a devida atenção, pese a retórica moralista que normalmente adoptam. E sempre nos lembramos da ilha de Lesbos e do acordo firmado com a Turquia, no ano de 2016, pelos líderes europeus, para concentrar os seus cidadãos que pediam asilo e para simplesmente os devolver ao referido país.

Entretanto, o número de imigrantes em Portugal não pára de crescer, sendo, no início de 2023, superior a 757 mil, que significa uma percentagem de mais de sete por cento da população activa no nosso País. Há 12 anos, essa percentagem era inferior a metade daquele valor. Para tal contribui decerto a facilidade de deslocação das pessoas, que optam pela mudança, mas com a perspectiva de estabelecer uma nova vida, mesmo que por um curto período de tempo, num outro país. Então deveria competir aos governos e administrações o estabelecimento de políticas de recepção, alojamento e outros cuidados, aos cidadãos imigrantes, integrando-os na vida colectiva de uma forma natural e respeitadora da sua identidade.

“…está privado das recordações
de uma pátria perdida ou da
esperança de uma terra prometida

Em “O Estrangeiro“, sua obra de referência, Albert Camus ensaia o que Sartre classificaria como “o absurdo”, uma espécie que considera muito singular e que define a relação do homem com o mundo. No universo privado de ilusões e de luzes o homem sente-se um estrangeiro, num exílio sem recurso, uma vez que “…está privado das recordações de uma pátria perdida ou da esperança de uma terra prometida“. Sartre afirma ainda que o estrangeiro pintado por Camus “…é justamente um desses terríveis inocentes que constituem o escândalo de uma sociedade porque lhe não aceitam as regras do jogo“. Na obra, o estrangeiro não era propriamente culpado ou inocente e, apesar de ter matado um homem, considerava-se calmo e tranquilo. Convém dizer, a propósito de justiça, que muitos imigrantes continuam a ser sujeitos, no nosso País, a políticas securitárias e à discricionariedade da justiça, muitas vezes tratados como criminosos à partida, simplesmente por serem diferentes.

O absurdo pode, nos dias de hoje, ser consubstanciado nas barreiras burocráticas, nas situações de abuso e exploração laboral e numa tipologia muito particular de discriminação, que impede o “estrangeiro” de usufruir dos seus direitos fundamentais.

A tentativa de encontrar o imigrante ideal, parece ser o desejo indómito dos que hoje defendem, com “arrogância integracionista“, a “limpeza”, seja ela étnica ou simplesmente retórica, estão condenados ao mesmo destino do “herói” de Camus, ainda que, obviamente, em sentido figurado.

Há sempre, porém quem encontre o que procura encontrar. A argentina Luciana Trimano, investigadora em comunicação social, descobriu uma espécie, que parece a “ideal”, de imigrantes. Define-os como neo-rurais e cunha mesmo o designado neo-ruralismo, designação que teria surgido em França na década de 60, como “um tipo de mobilidade populacional e residencial gestada no calor de uma sociedade contemporânea que busca uma maneira diferente de habitar o mundo capitalista”, ou seja “…um deslocamento humano lutando para refazer os rastros da modernidade no imaginário e nas experiências cotidianas, nas quais o vital se sobrepõe ao económico”.

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Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.

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