Nómadas com território?

Por Alfredo Soares-Ferreira

As mais recentes notícias sobre um eventual apoio àquilo que chamam “nómadas digitais”, chamam a atenção para mais um “fenómeno” desta “modernidade” que teima em nos surpreender. Atentando na definição corrente de nómada, encontramos a de alguém que não tem casa ou residência fixa, ou que é relativo às pessoas ou aos povos que se deslocam permanentemente para garantir a sobrevivência. Sendo que o termo “digital” se vem aplicando, nas últimas décadas, em oposição ao de analógico, encontramos, no Dicionário Infopedia, uma definição prática para nómada digital, o indivíduo que, “…pela natureza das funções que desempenha e por via do recurso a tecnologias de informação, pode trabalhar de forma remota, permitindo a adopção de um modo de vida errante, viajando e residindo em locais distintos por períodos mais ou menos longos”.

Poder-se-á questionar se a tecnologia deve estar ao serviço do cidadão, ou se, pelo contrário, a tecnologia, nomeadamente a digital, constitui um instrumento de dependência e de opressão. A ambiguidade do ser humano, bem como as contradições inerentes, determinam em primeira instância uma superação dos determinismos tecnológicos, que normalmente querem inferir como “naturais” as vantagens das tecnologias e do seu desenvolvimento e aperfeiçoamento, numa melhora da qualidade de vida, consubstanciada, por exemplo, na educação e no emprego. O filósofo norte-americano Andrew Feenberg, especialista em Filosofia da Tecnologia, propõe uma visão crítica da tecnologia, constatando que as tecnologias não são artefactos ou objectos neutros e que, como tal, são as condições em que ela é desenvolvida e as relações de poder que a estruturam que regulam a sua utilização. Na sua obra de 2002, “Transforming Technology: A Critical Theory Revisited”, defende que é evidente a exclusão de uma imensa maioria na participação nos processos de decisão ligados à designada “transição digital”. Para Feenberg, opressão e emancipação por meio da tecnologia digital são faces da mesma moeda.

E não será decerto fácil descobrir possibilidades emancipatórias nesta transição digital neoliberal, baseada em condições existenciais concretas e actuais, que, em vez, de libertarem os trabalhadores, acabam por fazer deles, peças avulsas de um sistema.

A imensa propaganda aos considerados “nómadas” de tipo digital é hoje acompanhada de oferta de condições concretas, tidas como vantagens competitivas, uma linguagem e um discurso que está intrinsecamente ligado ao fenómeno do “empreendedorismo” e que quer fazer inculcar a ideia de que o trabalhador se pode transformar em empresário de si mesmo, ou no tal “colaborador” que a empresa assume como “peça” da sua máquina. O dito “nómada”, é então o indivíduo que aproveita a tecnologia para realizar as tarefas da sua profissão de maneira remota e que não depende de uma base fixa para trabalhar. Deste ponto de vista, uma “liberdade local para trabalhar”, que pode aplicar-se em e a qualquer lugar do mundo.

A atracção, uma parte fundamental da propaganda, fala e descreve em pormenor todas as vantagens de ser “nómada”, desde o viver de forma mais barata, viajando “de forma intensa” e ainda assim gastar menos do que estar numa cidade a trabalhar, a uma pretensa flexibilidade de horários, a uma multiplicação “fácil” de rendimentos. um imenso e incontável mundo de vantagens que vai ao ponto de referir o fim do “síndrome pós-férias” e da felicidade total e completa que adapta o trabalho à vida e vice-versa e que leva a afirmar, no limite, que uma forma de viver em qualquer sítio à escolha, sem ter de se preocupar em arranjar emprego é a forma suprema de satisfação. É então a liberdade total, sob todos os pontos de vista, mesmo que seja à dependência e à sujeição.

Ao que parece, o Estado português é um dos primeiros a ter vistos para “nómadas digitais”. A notícia é do final de Outubro passado e refere um visto de estadia temporária e de autorização de residência, que pode ser pedido nos consulados portugueses ou no Serviço de Estrangeiros e Fronteiras, prevendo medidas para trabalhadores remotos em Portugal e que, segundo o Governo, estabelecem “procedimentos que permitem atrair uma imigração regulada e integrada, para o desenvolvimento do país, mudar a forma como a administração pública se relaciona com os imigrantes e a garantir-lhes condições de integração…”. Ao mesmo tempo constata-se que os “nómadas digitais” pressionam a oferta de alojamentos em Lisboa e no Porto e que alguns operadores imobiliários, que investem em residências de estudantes, estão agora a direccionar uma parte da sua oferta para esta nova “modalidade de negócio”. Neste mês de Novembro, soube-se ainda que o Governo prepara um programa com “escolas de turismo para nómadas digitais”, para acolher e orientar esta nova espécie de cidadãos, para, no entender da Secretária de Estado do Turismo, Comércio e Serviços, “…ajudar a decisão destes nómadas digitais, informando sobre as potencialidades do país, qual será a melhor localização para se poderem instalar”. Para dourar a oferta a governante afirmou até “Se gostam de surf, provavelmente o centro do país, com Peniche e Nazaré, se gostam mais do recato do nosso Alentejo, do nosso Douro, Centro ou dos Açores, também. A ideia é servir de montra de Portugal (…) e facilitar a decisão”. Claro que, como não podia deixar de ser, estas declarações patéticas foram produzidas num evento de “empreendedores”, recentemente realizado na Capital, pago pelo Governo e pela Câmara de Lisboa.

Entretanto, contrariando um pouco a “festa” da propaganda, circula uma petição pública “contra os benefícios aos nómadas digitais”, que considera que a “…nova medida dos vistos para nómadas digitais é inerentemente discriminatória, ou até mesmo xenófoba, para todos os portugueses que trabalham e pagam impostos.” A petição invoca o artigo 13º da Constituição da República (princípio da igualdade), que estabelece que “Todos os cidadãos têm a mesma dignidade social e são iguais perante a lei.”, e que “Ninguém pode ser privilegiado, beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem, religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição social ou orientação sexual.”, referindo a enorme discrepância de tratamento entre os ditos “nómadas” e os cidadãos em geral, no que reporta particularmente aos descontos em sede de IRS. Considera ainda que existe uma “importação descarada de estrangeiros para as grandes cidades”, que, terá “…mais consequências negativas do que positivas, especialmente se não são sujeitos aos mesmos impostos que todos os outros.”

A suprema ironia é que parece que estes “nómadas” têm um território. Declarações, notícias e outras manifestações da comunicação social, sempre atenta a novidades que vêm embrulhadas com um rótulo digital, dão conta disso mesmo: o nosso País é um território atractivo para os ditos “nómadas”. Asserções como, “Manter Portugal como destino preferido pelos nómadas digitais”, “Portugal é um bom destino para isso…”, “Muitos destes nómadas digitais têm investido em imóveis para turismo residencial”, espelham uma realidade paralela, que, de facto, serve apenas para iludir e encobrir injustiças e mais desigualdades. Ou então, para produzir injustiças e mais desigualdades.

Os novos turistas, que produzem zero, em valor acrescentado, irão, ao que parece, “inundar” o País, introduzindo mais uma artificialidade criativa, coisa em que o neoliberalismo é fértil.

As tentativas, algumas, diga-se de passagem, coroadas de um êxito efémero, são mais um exemplo de manobras de diversão, uma mistificação do que é o trabalho e do valor que ele representa para uma sociedade.

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Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.

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