Morabeza: Os cães e os velhos

Vanda Azuaga *

Li uma vez, já nem sei onde, que alguém famoso cujo nome esqueci, tinha dito qualquer coisa do género “o avanço duma sociedade pode ver-se na forma como cuida os seus animais”. Deve ter sido num post qualquer do FB, creio. Não retive o nome, pois muitas vezes se atribuem afirmações a A, B ou C, e é tudo falso – retive a mensagem, não o mensageiro.

“Aqui, nós cuidamos dos nossos pais, em casa! Arranjamos uma pessoa que cuide por nós, e pagamos.”

Katia, massagista

Veio-me isto à cabeça, numa das muitas vezes em que saio de casa e apanho um susto com os cães vadios que percorrem a cidade da Praia, uns sós, outros em matilha. Umas vezes são pacíficos mas outras desatam a ladrar furiosos e ponho logo a mochila em riste para me defender, enquanto me afasto de fininho. Alguns deambulam nas traseiras da minha casa, na “savana”, como gosto de lhe chamar. O nome é romântico, muito inspirado em memórias esbatidas do rei Leão contemplando a savana verdadeira, capim seco, árvores mirradas e espinhosas. Aqui, mesmo ao abrir da porta da sala, a visão romântica esbate-se, no meio de restos de entulho de obras e lixo, sobretudo, plásticos, latas e garrafas de vidro. Lá andam eles, sempre a farejar se algum saco de lixo tem algo que se coma. Por vezes pensei em matar-lhes a fome com alguns restos de comida, mas a ideia de que outras bichezas se iam aproximar, nomeadamente os ratos, tolheu-me as boas intenções. Um dia assisti a uma cena entre uns sete ou oito cães, todos a atacarem outro, que me incomodou muito. O desgraçado do “piquenote” gania e fugia, perseguido por uma meia dúzia de irmãos enraivecidos. Lembrou-me uma cena, no Kruger Park, num safari, ao romper do dia – uma gazela morta jazia numa encruzilhada por onde o jipe passava. Aproximavam-se umas duas ou três hienas, que foram surpreendidas por um grupo de mabecos esfomeados. A cena foi horrível, de tão violenta. Cheirava a sangue fresco, a gazela tinha sido morta mesmo há pouco tempo, os bichos rodeavam-na e o barulho dos dentes a ranger, dos ossos a estalar, das focinheiras arreganhadas prontas a rasgar quem se aproximasse da presa, o som desta expressão violenta, desta luta pela comida, este rodopiar de animais enraivecidos foi-me muito desconfortável. Sobretudo pelo som e pelo cheiro. Eu sei que é natural, que alguém tem de comer e alguém tem de ser comido. Mas, para assistir a cenas destas, prefiro ver na National Geographic, pelo menos não sinto o cheiro a sangue nem ouço o estalar dos ossos.

Imagens: DR/Pinterest

Vem também a propósito, a pergunta que a minha amiga Zu fez, quando me veio visitar a Santiago – aqui também há lares de idosos? Boa pergunta, nunca me lembrei de perguntar, mas vou saber. Pelo que apurei, há tipo centros de dia, onde os mais velhos podem ficar enquanto os filhos trabalham. Mas ninguém mandaria os pais para um lar! Katia, a minha massagista, mostrou-se indignada – não, aqui, nós cuidamos dos nossos pais, em casa! E se não puderes, insisti. Arranjamos uma pessoa que cuide por nós, e pagamos. A conversa continuou e fiquei com a proposta de que, quando já estiver prestes a ser internada num lar de idosos, ou venho para Cabo Verde e a Katia toma conta de mim, ou, se não puder, ela vai para Portugal fazê-lo. Ainda faltará um tempo, mas é sempre bom ter alternativas.

Comecei a falar de cães, acabo com velhos. Aparentemente, em Cabo Verde tratam mal os animais (apesar do trabalho de algumas associações, a julgar pelas marcas de esterilização na orelha). E aos velhos? Será que nós, europeus, não estamos a zelar por tratar dos animais e a descuidar o tratamento dos velhos? Não mereceriam todos ser bem tratados? Fica mais uma das minhas inquietações… Ah, só mais uma coisa, a propósito da possível convivência entre espécies (alargando a comparação a faixas etárias, if you know what I mean). Outro dia, a caminho do Palmarejo e junto aos contentores do lixo, estavam vacas, cabras e cães. Cada um comia o que podia… até papel (dos sacos de cimento)! Até quando segregar os velhos, separá-los dos adultos, dos jovens, das crianças?

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Vanda Azuaga
* Vanda Azuaga é mulher do norte, gosta de escrever e de mexer na terra. Adora colher tangerinas da árvore, tanques de pedra, manhãs de nevoeiro e cheiro a maresia.

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