Mitos, mentiras e equívocos

Alfredo Soares-Ferreira *

No início era o mito. Estávamos nos séculos IV e V a.C e tinha a função de contar ou narrar qualquer coisa a alguém, na acepção de uma história sagrada, com origem nos deuses. A narração era da autoria de seres dotados de uma capacidade especial, a de serem capazes de transmitem verdades absolutas. Nos dias de hoje, o significado do termo está associado àquilo que engana, que ilude, que oculta a verdade, uma ficção em que alguns acreditam. Associar o mito à mais descarada falsidade, ou mentira, pode parecer, à primeira vista, grosseiro. Pelo meio surge o imenso território dos equívocos. A arena política está, hoje em dia, plena de ambiguidades.

A longa jornada para a noite de 10 de Março recorda-nos outras noites, sempre com a mesma esperança, exactamente a que condiz com a vitória da razão sobre a emoção, que se pode traduzir no triunfo das forças que querem transformar a sociedade e erradicar a desigualdade e a injustiça sociais. São apenas eleições, diria decerto algum crente nos regimes de democracia representativa do Ocidente, onde as pessoas, meticulosamente rodeadas de mitos, fustigadas pela propaganda e infestadas de sondagens insidiosas, vão perdendo cidadania, a pouco e pouco.

Os mitos caseiros destinam-se basicamente a denegrir o Estado Social, de que são exemplos, as proclamadas falta de sustentabilidade da Segurança Social e a “falência do SNS”. Relacionados, directa ou indirectamente com a questão de salários e pensões, circulam à volta da ideia falaciosa da necessidade de “aumentar a produtividade” para subir uns e outras. A nível europeu, convergem na “crença” em a União venha a ser aquilo que nunca será e que a moeda única seja o remédio para todos os males. E, pior que tudo isso, o mito da NATO, como “aliança defensiva”, asserção que tem vindo a produzir estragos nalguma Esquerda, provavelmente equivocada.

Centremo-nos no caso da TAP e na campanha que a classifica como um “activo tóxico”. Este mito é de tal forma eficaz, que a informação prestada pelos diversos órgãos de comunicação social é completamente subordinada àquela tese e passa como se verdade fosse, muitas vezes sem contraditório. Conforme se pode ler numa Carta Aberta de cidadãos, a 23 de Maio 2023, ”O tempo provou que a privatização ilegal da TAP, pelo Governo de gestão do PSD-CDS, em 2015, entregando a empresa a quem não tinha a capacidade financeira necessária, foi ruinosa para os contribuintes e para a economia nacional”. Numa intervenção recente, no programa da RTP, “Tudo é Economia”, Ricardo Paes Mamede, responde à tese da doxa, “A TAP é um sorvedouro de dinheiros públicos”, formulada por Ricardo Arroja. Mamede diz, em primeiro lugar, que a TAP, quando foi privatizada em 2015, tinha capitais próprios negativos de 530 milhões de euro. Em 2019, aumentava aquele valor para 581, ou seja, a Empresa estava ainda mais descapitalizada que antes. A TAP teve, entre 2015 e 2019, um total de 20 milhões de euro de prejuízo. Nos cinco anos antes de ser privatizada, entre 2009 e 2014, teve 130 milhões de lucros. Comparou ainda a TAP, que há 30 anos não é capitalizada pelo Estado, à Ryanair que, entre 2015 e 2023, recebeu mais dinheiro em subsídios do Estado e não paga impostos, nem salários, nem contribuições para a Segurança Social em Portugal. E terminou, para tentar desfazer o mito, que a TAP pagou, em 10 anos, 1,4 mil milhões de euro para a Segurança Social e 1,1 milhões de euro de IRS.

O historiador Luís Reis Torgal afirma, na sua obra de 1989, “História e Ideologia”, que as ideologias desempenham um papel importante em tudo o que pensamos, fazemos ou omitimos, sendo fundamental interrogarmo-nos constantemente a respeito da sua real influência no discurso historiográfico que procuramos cientificamente construir e validar. É na verdade a ideologia da Direita que fornece uma incomensurável lista de mitos e mentiras, induzindo nos cidadãos o equívoco supremo de pensar que vai ser capaz de resolver os problemas que criou. A Direita é hoje o espelho da hipocrisia, incapaz de assumir, por exemplo, as políticas que contribuíram para o empobrecimento dos cidadãos, como os cortes sucessivos em salários, pensões e contribuições para a Segurança Social. A sua tese de que a troika entrou no País para nos “salvar”, porque “não havia dinheiro” é a mais profunda mistificação da realidade, uma vez que o dito “salvamento” foi para a Banca e para as grandes Empresas e para aumentar a dívida portuguesa num ano em quase 20 mil milhões de euro. Apetece lembrar à Direita, que tem uma ideia enviesada de aprendizagem e nem sequer é capaz de interpretar a História, que, naqueles tempos bem recentes, a Islândia mandou os seus banqueiros para a prisão.

“Pela direita, desde manhã, que se anda ao contrário”

Diário de Lisboa, 28 de Maio de 1926.

Socorro-me do Luiz Pacheco para constatar que há para aí uns figurões, que são figurantes, mas não conseguem ser figuras. O patético agradecimento de Montenegro ao “amigo” Passos Coelho é mais do que isso. É a demonstração perfeita de como extremar a Direita portuguesa, artificialmente unida numa “aliança” bafienta. O “Obrigado Pedro, pelo que fizeste pelo País e pelas pessoas e por nos teres libertado da Troika” é a manifestação, algo desesperada, da identificação com perigosos extremos. A “simpatia” pelas posições racistas e xenófobas do “afilhado”, nascido do ventre do seu Partido, e que ora se emancipou, faz da “figura” que diz ser líder da Direita um tremendo equívoco. E que traz consigo o velho e decrépito mito da “Direita Salvadora” de 1926.

Lembramos, a propósito, que foi nesse ano que se começou a conduzir à direita em Portugal, conforme nos dá conta o Diário de Lisboa desse dia 28 de Maio: “Pela direita, desde manhã, que se anda ao contrário sem prejuízos dignos a registar-se. Agora é que isto se endireitou. Desde as 5 horas da manhã que tudo gira pela direita”.

Não queremos seguramente voltar quase 100 anos atrás. A nossa referência é mais jovem, tem 50 anos e está com a Revolução.

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Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.

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