Alfredo Soares-Ferreira *
Existe um conceito em ciência política, designado “Necropolítica”, que genericamente representa a legitimação da morte. Para cunhar este termo, os cientistas políticos invocam exemplos, em diversas partes do mundo, que, pelo seu significado, atingem foros de uma imensa provocação aos direitos humanos. É um poder de morte, um necropoder, que é estrutural no estádio actual do capitalismo e que se manifesta através de práticas e tecnologias “especiais”, cuja intenção deliberada é a extinção de grupos sociais ou até populações inteiras. Tal conceito é explicado e, de certa forma, instituído, pelo filósofo camaronês Achille Mbembe, que o define para além do alcance do “biopoder” do filósofo francês Michel Foucault, originário dos anos 70 do século passado. A amplificação conceptual da possibilidade da inclusão de processos biológicos nas operações do poder soberano traduz-se na junção da necropolítica à biopolítica e proporciona um potencial epistemológico e metodológico para a análise de múltiplas questões da política mundial. O autor afirma, a propósito, que o tempo actual é sobretudo o da fantasia da separação e até do extermínio e ultrapassa a mera questão da diferença.
Os dias de hoje ostentam um mundo que ergue fronteiras de arame farpado e em que o estigma do estrangeiro se inscreve a ferro e fogo no quotidiano. Assim o afirma Achille Mbembe, na sua obra de 2017, “Políticas da Inimizade”, onde se evoca o ressurgimento de “nacionalismos atávicos, na guerra contra o terrorismo, sacramento da nossa época, e num racismo de Estado que, a pretexto da defesa da civilização, varre réstias de democracia e suspende direitos dos cidadãos”.
O exercício de necropolítica, é não só deixar morrer, é fazer morrer também, de facto um verdadeiro e real poder de morte, afinal o poder de um estado perfeitamente à margem de todas as leis e tratados internacionais.
Uma das consequências visíveis da necropolítica é a “luta” de estados e nações que se proclamam de valores antigos e consolidados contra o que consideram ser a defesa da civilização e de um pretenso modo de vida, que dizem ameaçados. Esta ideia foi amplamente difundida e amplificada a propósito da guerra na Ucrânia e permanece ainda hoje nas mensagens primárias de grande parte dos dirigentes ocidentais e de comentadores contratados, que sustentam a tese sórdida de que o putativo apoio ao regime ucraniano significa a defesa da democracia e do que chamam o “modo de vida ocidental”, contra o inimigo russo. Aqui aplica-se um dos designados princípios de Goebbels, o do verossímil, que consiste em analisar e discutir a informação com diversas interpretações de especialistas, mas todas contra o inimigo escolhido, para que o receptor não consiga entender que o assunto interpretado não é verdadeiro.
Um exemplo muito actual de necropolítica é a rejeição dos países europeus aos refugiados africanos e árabes, milhares dos quais naufragam no mar Mediterrâneo por falta de socorro. Um outro, dramático e pungente, é a situação na Faixa de Gaza e, por arrastamento, na Cisjordânia, onde o Estado de Israel, a propósito de um acto de terror do Hamas, impõe uma vez mais ao povo da Palestina o mais feroz ataque e um poder da soberania que, na prática, significa a criação de zonas de morte, onde esta se torna o último exercício de dominação, uma instrumentalização da vida, pela destruição dos corpos. O exercício de necropolítica, é não só deixar morrer, é fazer morrer também, de facto um verdadeiro e real poder de morte, afinal o poder de um estado perfeitamente à margem de todas as leis e tratados internacionais.
Uma mensagem triste que nos chega de Gaza diz que há, em média, um chuveiro por cada 750 pessoas e uma casa de banho para cada 150. Questiona-se como pode haver vida nestas condições. E como é possível que o agonizante Ocidente esteja de tal forma dominado e colonizado pelo “patrão” americano que não consiga descolar e ter uma palavra contra a lei da retaliação, que faz cultura e que é afinal a memória de tantas décadas. Nas manifestações de necropolítica legitima-se a submissão da vida pela morte e pontifica a mais completa desvalorização dos saberes e modos de vida que não são os dos grupos hegemónicos e soberanos.
É ainda, segundo a terrífica constatação de Mbembe, o de, para além do direito de matar, o de gerar e gerir condições mortíferas, de morte em vida.
Um qualquer destino trágico une refugiados pobres, imigrantes e populações indefesas. O conceito de aporofobia, ou rejeição aos pobres, introduzido pela filósofa espanhola Adela Cortina, nos anos 90, pode ser aplicado aos palestinianos, de forma indiscriminada, uma vez que são privados das formas de ser e fazer, como por exemplo, a falta de acesso à mobilidade e cultura. Esta fobia tem, nesta vertente de análise, um significado especial, que faz parecer natural a vontade do agressor em praticar a rejeição, ou seja, uma extinção em massa.
A lei da retaliação consiste basicamente em aplicar a designada lei de talião, do latim, lex talionis, inscrito do chamado código de Hamurabi que reinou na Babilônia entre os anos 1728 até 1686 a.C.. Nele se estabelecia que o crime deve ser pago pelo infractor na mesma moeda. Parece ter ficado, desgraçadamente, na memória.
(Foto: Reut ers)
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