
Alfredo Soares-Ferreira *
Por mais estranho que possa parecer, existem afinidades evidentes entre o fenómeno matemático e o processo revolucionário, entendido este como um conjunto de mudanças, mais ou menos duradouras, quer na organização estrutural de uma sociedade, quer no poder político da mesma. A ciência matemática, no seu apelo ao raciocínio lógico, proporciona algumas surpresas, na forma revolucionária como trata constantes e variáveis, que são utilizadas para armazenar e manipular dados de forma lógica. A Matemática utiliza uma linguagem racional, que é universal e necessária para a compreensão do Mundo.
A matemática dos resultados eleitorais em Portugal, pode configurar, cem anos depois, a designada “revolução conservadora”, na Europa dos anos vinte. Chamar-lhe Revolução pode parecer um estranho contrassenso, dado o sentido progressista que associamos ao termo. Este movimento, que alastra assustadoramente, é profundamente reaccionário, eivado de um fundamentalismo preconceituoso e mesclado de opções deliberadas de cancelamento e eliminação. A forma como grupos e hordas fanáticas, que nada têm a propor, usam a Matemática é linear e puramente aritmética, muito longe da exigência conceptual e do espírito criativo, da especulação e da incerteza. Acresce dizer, entretanto, que os resultados eleitorais não dependem apenas das preferências dos votantes, mas também do método utilizado no tratamento dos resultados. Possivelmente, como acontece nas eleições norte-americanas, os resultados dependem mesmo essencialmente da metodologia. É a matemática em acção, no seu lado possivelmente obscuro, a “trabalhar” resultados para o lado que mais convém, provavelmente sempre o mesmo. O jornal Público de 18 de Março dá conta do desperdício de cerca de 670 mil votos, tal como em 2019 e de que quase 1,2 milhões de votos não serviram para eleger deputados. Neste caso, o culpado será o belga Victor D’Hondt, que era advogado e se intrometeu na estatística, com um modelo matemático que tem o seu nome e que configura um método proporcional de distribuição de mandatos, que favorece os partidos com maior dimensão. O artigo citado diz-nos ainda que “Um em cada cinco votos não elegeram deputados” e que, no distrito de Portalegre, quase metade dos votos foram “desperdiçados”.
Se os números não se adequam à realidade, então muda-se a realidade. […] A falácia das “contas certas” é um bom exemplo.
Uma vez que a Revolução não se compadece com truques e fintas, resta saber até que ponto a matemática está “comprometida” com determinados sistemas burocráticos, deixando os cidadãos à mercê do algoritmo, asserção que muito recentemente passou a integrar o léxico corrente. Na verdade, a população trabalhadora, que já simpatiza pouco com a Matemática e às vezes até pende para lhe ter alguma aversão, vai, por um lado, entrar em rota de colisão com a ciência e, por outro lado, abraçar as tecnologias refundadoras da passividade social, por força da resistência à mudança. Tentemos avaliar a qualidade da relação enviesada que a política mantém, por vezes, com a Matemática, na máxima proclamada e algo consistente: se os números não se adequam à realidade, então muda-se a realidade. E a verdade é que não são poucos os casos onde tal enviesamento se concretiza. A falácia das “contas certas” é um bom exemplo.
Poderá equacionar-se finalmente se a Matemática atrasa a Revolução, ou se porventura é justo pensar sequer nessa eventualidade. Desde a Revolução Industrial que a ciência matemática tem contribuído para os avanços civilizacionais, mesmo sabendo de algumas tentativas de retrocesso, umas bem, outras mal-sucedidas. A ciência matemática domina o pensamento criativo, no sentido do desenvolvimento de outras ciências, com técnicas e tecnologias destinadas a melhorar a vida das pessoas. Mesmo sabendo que foi aquela Revolução que estabeleceu a sociedade capitalista, dá-nos a outra face da moeda e mostra-nos que foi também neste tipo de sociedade que o proletariado se mobilizou durante o século XIX e entendeu que estava na hora de se libertar do jugo capitalista. Foi a Comuna de Paris, em 1871, a maior insurreição social contra a burguesia. E foi depois em 1917, na Rússia, com a tomada do Poder. Todas as invenções, técnicas e tecnológicas, dos últimos dois séculos, contaram sempre com o apoio revolucionário da Matemática.

A contribuição da Matemática na Revolução Francesa de 1789 evoca a introdução pela Assembleia Nacional Francesa de um sistema de medidas provisório, que seria apelidado, em 1795, como o sistema de medidas republicanas, afinal o Sistema Métrico Decimal, um sistema revolucionário, criado para se tornar um padrão internacional e científico, baseado na Terra, como medida universal. Vale a pela ler, a propósito, o livro “Meridiana”, uma obra do professor e romancista argelino-francês Denis Guedj, onde se relata a aventura dos cientistas franceses Jean Baptiste Delambre e Pierre Méchain, que atravessaram a França revolucionária, ao encontro um do outro, com a colaboração especial do matemático Jean-Charles de Borda, o homem que cunhou a designação de “metro”, o padrão universal da medida.
O sólido de revolução é, na Matemática, uma figura sólida que resulta da rotação de um plano de curva sobre um eixo, que se situa no mesmo plano. Este pode ser um pretexto para evocar a racionalidade e o espírito revolucionário, ao menos no plano romântico. Com mais ou menos melancolia, dizemos que existe (pode existir) algures um plano comum da Revolução com a Geometria, o ramo da Matemática onde se estudam as formas e as propriedades dos espaços. No chão comum dos revolucionários repousam a Liberdade, a Igualdade e a Fraternidade. As formas de acção e de luta e o plano para as consolidar e amplificar estão hoje em plena e constante revisão e aperfeiçoamento. A Revolução Francesa institui a figura do Cidadão. Nos dias de hoje, a tarefa número um, será a sua recuperação e dignificação.
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