Por Alfredo Soares-Ferreira
O direito à habitação, consagrado na Constituição da República, no artigo 65º, prescreve que “todos têm direito, para si e para a sua família, a uma habitação de dimensão adequada, em condições de higiene e conforto e que preserve a intimidade pessoal e a privacidade familiar”. Ao Governo da República compete promover e estatuir todas as medidas políticas que permitam que o imperativo constitucional se torne realidade. Aos Municípios estão atribuídas competências (Lei 75/2013 de 12 de Setembro) no âmbito da habitação, ao nível da promoção da habitação social e da gestão do respectivo património municipal, cumprindo-lhes, assim, realizar funções sociais de interesse público para a protecção das famílias cujos rendimentos sejam considerados nos limites da carência económica.
Habitação e Saúde

Intimamente ligadas, a habitação e a saúde, prendem-se com a qualidade de vida do cidadão. Seria de esperar assim, da parte dos poderes públicos, uma articulação conveniente e sistemática de acções e de iniciativas. E de apoio. Mas na verdade, não existe, ou parece não existir no nosso País, uma coordenação entre os Ministérios da Saúde e da Habitação. Se houvesse e se existisse vontade política para intervir, decerto que muitas medidas já estariam tomadas, para cuidar dos cidadãos, particularmente dos mais carenciados. O facto de, em Portugal, apenas existir uma percentagem de 2% do investimento público, em habitação, já permite compreender melhor a questão.
Vejamos como a saúde do cidadão se reflecte, quando a sua habitação não reúne os mínimos necessários à preservação da saúde e como, em alguns casos, promove a degradação da própria saúde.
É a tipologia da habitação que, na maior parte dos casos, não se adequa, nem protege a saúde. Veja-se por exemplo o facto de apenas 1/5 das famílias não terem hipótese de aquecer a sua casa, seja por força dos elevadíssimos custos com energia (a electricidade mais cara e o 4º gás mais caro da europa), seja simplesmente por a casa não estar preparada para a instalação de qualquer sistema de aquecimento. No caso particular do Grande Porto, uma percentagem de 45% das habitações necessitam de obras de manutenção, reparação ou reabilitação, por serem, na sua maioria, edifícios dos anos 70 e 80 do século passado.
Os espaços públicos exteriores às habitações, na maior parte dos casos, não contemplam os mínimos requisitos de saúde, salubridade e qualidade do ar, nem sustentam, por exemplo, a exigência de cumprimento dos mínimos de ruído, particularmente para os cidadãos idosos.
E que dizer dos cidadãos com deficiências, nomeadamente aqueles que têm que se deslocar em cadeira de rodas? Em Portugal, não chega a 30% a percentagem de edifícios preparados para a mobilidade e, os que o estão, custam fortunas, inacessíveis à grande maioria dos cidadãos.
A saúde reflecte-se para quem não possui casa própria e tem que recorrer ao arrendamento. No caso particular do Grande Porto, os valores actuais são verdadeiramente incompatíveis: o custo médio por metro quadrado, era, em 2020 (dados do semanário Dinheiro Vivo), de 11 euro, o que equivale a dizer que, por exemplo, um T3, com uma área mínima de 91 m2, pode custar 1.000 euro de renda mensal.
Finalmente, é de atentar também o caso dos cidadãos sem-abrigo, que estão sistematicamente à margem do estado de direito, sem habitação, sem apoio a nível da saúde e, obviamente, sem as condições mínimas de sobrevivência.
A preservação da saúde e a qualidade de vida compatível com este século, implica a exigência, por um lado de uma habitação condigna e também, por outro lado, que o Estado invista em políticas públicas para a habitação, de uma forma intensiva, quer a nível nacional, quer nos municípios em que a emergência assim obrigue.
Os programas de apoio
O programa de apoio “Edifícios Mais Sustentáveis” tem como objectivo apoiar quem quer fazer obras ou comprar equipamentos para melhorar a eficiência energética em casa e o programa “Casa Eficiente”, que visa conceder empréstimos a operações que promovam a melhoria do desempenho, exigem que o cidadão tenha que investir primeiro para concorrer depois, o que coloca fora dos ditos programas os cidadãos que não possuem capacidade para tal.

O programa 1º Direito, instituído pela Portaria n.º 138-C/2021, do DR n.º 125, é descrito como um programa de apoio ao acesso à habitação, que “…visa apoiar a promoção de soluções habitacionais para pessoas que vivem em condições habitacionais indignas e que não dispõem de capacidade financeira para suportar o custo do acesso a uma habitação adequada. O Programa assenta numa dinâmica promocional predominantemente dirigida à reabilitação do edificado e ao arrendamento. Aposta também em abordagens integradas e participativas que promovam a inclusão social e territorial, mediante a cooperação entre políticas e organismos sectoriais, entre as administrações central, regional e local e entre os sectores público, privado e cooperativo.” Os apoios podem ser concedidos quer a famílias, quer a Entidades, públicas, do terceiro sector, associações de moradores e cooperativas de habitação e construção e ainda a proprietários de imóveis situados em núcleos degradados, com vista ao realojamento de famílias. Entretanto, o investimento de 40 milhões de euro deste programa transfere a responsabilidade pela concretização para as autarquias, quando, na verdade, a responsabilidade deveria ser da Administração Central.
A financeirização da habitação e da cidade
A socióloga Ana Drago fala em rentabilização da cidade, “…para indicar a estratégia seguida de usar o stock imobiliário e a imagética da cidade para atrair investimento estrangeiro e procura externa – ou seja, apostou-se na gentrificação transnacional e no turismo de cidade assente na procura externa como forma de valorização da cidade – sem qualquer alusão, por mais ténue que fosse, a objectivos de renovação, requalificação urbana ou aumento/melhoria da provisão habitacional”.
Este processo de rentabilização insere-se na financeirização da economia portuguesa. A Autora acrescenta que essa financeirização se faz “…essencialmente em torno da articulação que se estabeleceu entre o sistema financeiro e o endividamento das famílias para aceder à habitação nos espaços metropolitanos – isto é, a financeirização da habitação centrou-se na captação de rendimentos do trabalho de largos segmentos urbanos que, por sua vez se endividaram para resolver necessidades habitacionais que não eram respondidas por provisão de políticas públicas”.
Assim se passa da financeirização da habitação para a financeirização da cidade, que aponta, na opinião da Autora, “…para uma rentabilização da própria «cidade», quer enquanto stock imobiliário quer enquanto lugar e, simultaneamente, lança os processos da rentabilização da cidade numa escala transacional que negligencia as condições «locais» de reprodução social do trabalho, nos próprios contextos que procura rentabilizar.”
Lisboa e Porto, a mesma luta
Na linha da frente, “contra a não utilização das casas públicas para dar resposta às famílias que mais precisam e contra a falta de políticas que combatam os verdadeiros problemas do país”, o Colectivo Habitação Hoje (www.habitacaohoje.org) é um movimento nascido no Porto pelo Direito à Habitação: “Acreditamos que só a solidariedade e a luta organizada e informada podem fazer cumprir o direito à habitação, um direito essencial para um projecto de sociedade justa”.
Constatando que “...há milhares de casas vazias em todos os bairros pelo país, casas cada vez mais degradadas, pelas quais o Estado nunca se interessou! Vemos famílias em sobrelotação, com filhos a dormir na cama dos pais e a usar salas como quartos, enquanto a casa ao lado, e muitas outras nas cidades, estão vazias há décadas!”, dizem “Quem ocupa não tem culpa!”. Afirmam-se numa luta “contra os abusos de poder do Estado!”, uma vez que, existe uma negação ao direito à habitação, com despejos sistemáticos e por vezes violentos, no que afirmam ser um atentado à Democracia.
A luta já desceu à rua, em Lisboa, a 6 de Julho e na Cidade do Porto, será no próximo dia 9 de Julho: “…convocamos todas as pessoas vítimas de abuso dos senhorios, todas as vítimas da especulação imobiliária, todas as pessoas que se viram obrigadas a ocupar casas, todos os moradores dos bairros camarários sem condições, moradores dos bairros do IHRU, dos bairros precários, das ilhas e dos pátios.”
Uma luta necessária e urgente, na exigência ao Estado que se assuma como promotor de habitação pública e dinamizador das políticas de construção e reabilitação urbana, no sentido de alargar a oferta, a custos compatíveis com os rendimentos das famílias.
No centro das políticas públicas deveriam estar todas as iniciativas e acções concretas, tendentes a contrariar este dado inadmissível nos tempos de hoje: a percentagem da população residente em Portugal, em risco de pobreza ou exclusão social, é, segundo dados do INE em 2020, de 19,8%.
É mais que necessário romper com a financeirização e a especulação no sector imobiliário. Impõe-se uma política alternativa que rompa definitivamente com os interesses dos grupos económicos e financeiros.
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