Energia Vital

Na semana passada, referimos dois temas que praticamente passaram despercebidos na Campanha, a Água e a Energia. Hoje abordamos o segundo, sabendo que os recentes aumentos de preço penalizam empresas e famílias, particularmente estas, sobretudo se forem de parcos recursos. O facto é que, em Portugal, o fenómeno da pobreza energética existe e provoca mortes, todos os anos, devido ao frio. E, entretanto, esse fenómeno convive com uma economia de privilégio no sector, uma herança dos tempos da troika, que ainda não foi revertida.

Aumentos anunciados em Dezembro 2021
A Agência Lusa anunciava, a 28 de Dezembro, um novo ano com aumentos generalizados, entre os quais o da factura de electricidade. O aviso era claro, “Salários e pensões sobem, mas serviços e bens ficam mais caros. O preço da electricidade para as famílias do mercado regulado vai subir, em média, 0,2% no próximo ano…”. Segundo a notícia, a Entidade Reguladora dos Serviços Energéticos (ERSE) havia comunicado que “Para os consumidores que permaneçam no mercado regulado (que representam 5% do consumo total e 915 mil clientes), ou que, estando no mercado livre, tenham optado por tarifa equiparada, a variação média anual das tarifas transitórias de venda a clientes finais em baixa tensão é de 0,2%”.

Porque aumenta o preço da energia
Decerto que já terá ouvido os comentadores habituais justificando o aumento dos preços da electricidade, que em alguns casos chegam aos 40 por cento, pelo fenómeno “natural” da retoma da economia, ou seja, que após os períodos de confinamento, provocado pela pandemia, o retomar dos negócios provocaria um aumento da procura, funcionando o mercado. Mais procura, menos oferta, preço mais alto, tudo muito claro.

Ora, o que acontece é apenas o resultado das decisões políticas em benefício do mercado livre e da concorrência, que, há mais de duas décadas implementaram a desregulamentação dos mercados europeus de gás e electricidade. Os aumentos são também a nível europeu e, apesar de terem sido dadas garantias de que o aumento da concorrência iria fazer reduzir o preço da energia, o que se verificou foi exactamente o contrário, particularmente na conjuntura actual, desfavorável, face à pandemia.

Na realidade, desde o final do verão de 2021, os preços da energia têm registado uma subida generalizada. Esse aumento, reflecte-se hoje num aumento generalizado de preços dos bens de consumo essenciais, penalizando, como sempre, as empresas e as famílias, em situação de mais precaridade.

Um outro factor, embora de proporções diversas, é a mudança do paradigma da energia: como fecharam fábricas de carvão e como existe agora uma maior dependência de fontes renováveis, o preço da energia tem tendência a aumentar.

O cidadão não paga a energia apenas na factura…
Já deve ter ouvido falar nos CMEC. São os “Custos para a Manutenção do Equilíbrio Contratual”, um instrumento introduzido em Dezembro 2004, pelo Governo de Santana Lopes, em que António Mexia era, ministro das Obras Públicas. Esse “instrumento” destinava-se a atribuir uma compensação à EDP, na sequência da liberalização do mercado energético imposta por Bruxelas. Antes, a EDP beneficiava de receitas oriundas de uma série de Contratos de Aquisição de Energia (CAE) que abrangiam a exploração de centrais eléctricas no país. Então, os CMEC surgem como uma renda para compensar a empresa pelo fim antecipado daqueles contratos de longo prazo.

Vários CMEC já terminaram, mas o último só cessa em 2027. Só por esse, a EDP ainda tem a receber mais de 154,1 milhões de euros (dados de 2020). Todavia este valor, estabelecido pela ERSE, é contestado pela EDP, que quer receber mais 102 milhões!

Por essas e outras razões, Mexia e outros “colaboradores” foram acusados de corrupção, processo ainda em curso. Pelas razões erradas, o cidadão, que nada tem a ver com a situação, é penalizado, uma vez que os custos acabam por ser repercutidos na sua factura, directa ou indirectamente.

A captura privada da energia em Portugal
A privatização da EDP e da REN, em Fevereiro de 2012, abriria portas ao investimento chinês em Portugal, em áreas tão diversas como a banca ou a comunicação social. O nosso País é, juntamente com a Inglaterra, o exemplo europeu em que as redes de alta tensão são totalmente privatizadas. Mas o caso português é ainda mais “radical”, uma vez que entregou o monopólio natural ao Estado chinês. Curiosamente, (ou não) não se tem falado o suficiente sobre as verdadeiras razões da privatização da EDP, nem da forma como foi efectuada, em particular a privatização da sua rede física, um caso inédito na União Europeia. Para além dessa “curiosidade”, há ainda uma outra: na vigência do governo de Passos Coelho, o negociador nomeado para negociar a privatização foi depois designado para a administração da mesma empresa.

O Jornal Monde Diplomatique, na Edição Portuguesa, de Agosto 2019, publica o artigo “Electricidade: entre transição sustentável e captura privada”, onde o deputado Jorge Costa, relator da Comissão Parlamentar de Inquérito ao Pagamento de Rendas Excessivas aos Produtores de Electricidade, refere que, “… o operador da rede de transporte acumula o planeamento da rede e a gestão global do sistema, funções críticas para uma transição energética com contenção de custos, segurança de abastecimento e integração de nova produção renovável”.

Esta realidade indesmentível limita drasticamente o empreendimento gigantesco da designada transição energética, que tem uma limitação de peso, apesar dos propósitos confessados do Programa do XXII Governo Constitucional, “A transição de um modelo económico linear, sustentado nos combustíveis fósseis, para um modelo económico circular e neutro em carbono implica uma transformação social e a alteração de comportamentos, promovendo um consumo consciente e responsável e melhorando a sustentabilidade dos processos de produção, a fim de manter o valor de produtos, materiais e outros recursos na economia pelo máximo tempo possível.”

Foi preciso chegar a 2015 para concluir que a privatização da EDP (e também a da REN) não acautelou os interesses estratégicos do Estado, uma conclusão da auditoria dos processos de privatização do sector eléctrico, do Tribunal de Contas. O parecer diz que, “…no caso das privatizações da EDP e da REN, o Governo não tomou medidas legislativas que cautelassem os interesses estratégicos do Estado Português após a conclusão do processo de privatização” e que “…não obstante o decreto de privatização da EDP e da REN e o acordo de venda e de parceria estratégica conterem referências à salvaguarda do interesse nacional, não foi prevista qualquer cláusula de penalização para o seu incumprimento”.

O caminho seguido desde então tem sido hesitante e demasiado apegado ao conceito de não mexer nem conflituar com os grandes interesses instalados ou a instalar. Os cidadãos, que nada ganharam com as privatizações, antes pelo contrário, são reduzidos à condição limite de meros consumidores.

O modelo actual foi desenhado no final do século passado, sobretudo para rentabilizar o monopólio do sector eléctrico, num tempo em que a produção era sobretudo e praticamente das fontes fósseis. Muito embora contra alguns estados europeus, o actual modelo continua a ser erradamente defendido pela EU e deverá ser erradicado, para defesa dos cidadãos, das famílias e das empresas.

O que poderá (deverá) ser feito
O que deverá começar a ser feito é o desenho de um plano energético nacional, para reduzir os consumos e o défice energéticos, apoiado em medidas complementares, que tenham em consideração os impactos e as limitações das políticas ambientais, de transporte e de produção. Sem prejuízo de outras medidas, deverá ser considerada a reposição da taxa de IVA de 6%, que vigorou até 2011.

E, para além da necessária regulamentação do sector eléctrico, estão sempre em cima da mesa uma série de medidas que podem (devem) passar pelo incentivo à promoção de cooperativas comercializadoras de electricidade, que devem ser “protegidas” na legislação, para assim proteger os cidadãos. É exemplar, o caso da Coopérnico, uma cooperativa fundada em 2013, por um grupo de cidadãos, sendo neste momento a primeira cooperativa de energias renováveis em Portugal a comercializar electricidade para todo o país e onde os clientes são também os donos da sua empresa de energia.

About the Author

Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.