Dançando Changó

Compatriotas, as armas vos darão a independência,
as leis vos darão a liberdade.”
Simon Bolívar

A vitória de Gustavo Petro na Colômbia, é mais uma porta aberta para as necessárias transformações na América do Sul. O jornalista François Bougon, do diário on-line de investigação Mediapart, escreveu, a 25 de Junho, “As forças progressistas estão a ganhar força, do Rio Grande à Terra do Fogo. A Colômbia é o último país a eleger um presidente de esquerda, antes do provável retorno de Lula ao Brasil”. A influência que esta significativa vitória poderá ter, quer naquele continente, quer em outras partes do globo, irá definir-se à medida que se perceber que tipo de políticas o novo presidente vai levar a cabo. Para já festeja-se, dançando o “Changó”, ao som da rumba, como se faz no Valle del Cauca, terra de Francia Márquez.

Por Alfredo Soares-Ferreira

A Colômbia, 200 anos após Simon Bolívar

A Colômbia é um Estado independente, desde 1819. Depois de muitas lutas, o ano de 1810 é assinalado como a primeira tentativa de proclamação da independência. Simon Bolívar está associado, desde o início, à luta contra a monarquia espanhola e à longa guerra pela independência, é a primeira figura das guerras de independência da América Espanhola. Bolívar, comumente nomeado como herói e libertador, participou na fundação da primeira união de nações independentes na América Latina, designada como Grã-Colômbia (uma homenagem ao navegador Cristóvão Colombo) e foi Presidente do País, entre 1819 e 1830.

Bolívar foi o responsável pelo reforço da ideologia libertadora e democrática e pelo incentivo às práticas democráticas na maioria da América que fala espanhol. Foi ele que, tendo liderado a Colômbia, contribuiu decisivamente para a independência da Bolívia, do Equador, Panamá, Peru e da Venezuela.

Quem é Gustavo Petro

Gustavo Petro, de 62 anos, é, segundo Raquel Ribeiro, autora do artigo “Presidenciais na Colômbia: a vitória dos ninguéns”, publicado a 22 de Junho, no jornal electrónico AbrilAbril, O Outro Lado Das Notícias, “…um economista, ex-guerrilheiro do movimento M-19 que, até 1990, era a segunda maior guerrilha da Colômbia (atrás das FARC), guerrilha urbana sobretudo de jovens de classe média de esquerda, dissolvida nos primeiros Processos de Paz, e que deu depois origem ao partido Alianza Democratica. Foi deputado desde 1998 e senador desde 2006, presidente da Câmara de Bogotá entre 2012-2015, afastado a meio do mandato e depois reinstituído num suspeito processo de impeachment. Foi candidato à presidência em 2010 (ficou em quarto lugar) e em 2018, em que disputou a segunda volta contra o ainda presidente Iván Duque.”

Para se perceber como a Colômbia continua a ser um dos países mais perigosos do mundo para quem, segundo Raquel Ribeiro, “…defende direitos humanos, direitos civis, sociais, económicos, direito à água, à terra, ao pão”, seria suficiente dizer que, no dia da eleição, ainda segundo a mesma Autora, “…duas das suas testemunhas eleitorais (nas mesas de voto), no estado do Cauca, foram assassinadas a caminho das urnas” e ainda que neste mês de Junho, “…foram assassinados sete activistas sociais. Até ao dia de hoje, segundo o Indepaz, já vão em 87 os activistas e 21 os ex-combatentes eliminados, só este ano.”

O Pacto Histórico

A aliança que levou Gustavo Petro ao poder, designada por Pacto Histórico é uma ampla frente que junta vários partidos e movimentos indígenas e sociais.

Constituído a 11 de Fevereiro de 2021, com o objectivo de apresentar uma candidatura às eleições presidenciais, contou com os nomes de Gustavo BolívarAlexander LópezAída AvellaIván CepedaMaría José PizarroFrancia Márquez, lideres de partidos políticos e movimentos políticos colombianos. Foram 8, as organizações que iniciaram a ampla coligação: Colômbia Humana, União Patriótica, Partido Comunista, Polo Democrático Alternativo, Movimento Alternativo Indígena e Social, Partido do Trabalho, Unidade Democrática e Todos Somos Colômbia, aos quais se juntaram posteriormente mais 9: Alianza Democrática Amplia, Movimiento de Autoridades Indígenas de Colombia,  Movimiento de Integración Democrática, Movimiento por el Agua y la Vida, Movimiento por la Constituyente Popular, Congreso de los Pueblos, Ciudadanías Libres, Movimiento por la Defensa de los Derechos del Pueblo e Poder Ciudadano. Um total de 17 organizações, que, entretanto, viria a aumentar, devido ao apoio expresso de mais 13 partidos e outras entidades políticas e sociais.

No mês de Março, a coligação realizou uma consulta popular para que fosse encontrado um candidato único às eleições que se iriam realizar um ano depois. A esse acto apresentaram-se Gustavo Petro, a advogada e activista Francia Márquez, a ​ líder indígena Arelis Uriana, o líder protestante Alfredo Vergel e o jornalista e político, ex-governador do Estado de Nariño Camilo Romero Galeano.  

A consulta viria a indicar o nome de Gustavo Petro, com uma percentagem superior a 80%, tendo ficado em segundo lugar (com cerca de 15% de votos) Francia Márquez, que hoje é Senhora Vice-Presidente do País.

O “lápis da cultura popular

Uma das palavras de ordem das mobilizações em defesa do voto em Pedro Castillo, no Chile, foi o lápis da cultura popular: lápis feitos pelas próprias pessoas, com cartazes e grafismos feitos por diferentes artistas.

Numa época marcada por algumas convulsões, do ponto de vista militar e na perspectiva económico-financeira, será decerto curioso seguir a evolução dos acontecimentos na Colômbia. O já citado AbrilAbril, afirmava, a 22 de Junho, que a BBC Mundo teria passado “…grande parte da campanha a explicar o que é a «Petrofobia»: o medo do castro-chavismo, a potencial venezualização da Colômbia, os fantasmas do costume, os mesmos que elegeram Bolsonaro no Brasil. O pânico das palavras «povo» e «democracia» faz tremer até os militares, como dizia um conselheiro do ainda Presidente Duque …, sobre uma potencial eleição de Petro significar uma «nova ordem». Esta «passa não só por afectar a liberdade e a propriedade privada, mas também substituir as actuais forças militares [polícia nacional e o exército]», que, afirma o conselheiro (sem se rir), são «apartidárias».”

João Melo, jornalista do DN, escreve, a 21 de Junho, um artigo de opinião, dizendo que, “Ao contrário do que querem fazer-nos crer os ideólogos do capitalismo tecno-financeiro global e hoje dominante (também chamado neoliberalismo), a História, obviamente, não acabou nem pára. Por isso, alguns deles não escondem, agora, que o modelo deve ser imposto mesmo à custa de guerras e expansionismos, confirmando que, ao contrário (talvez) do «velho e bom liberalismo», o actual não gosta de pessoas (prefere robôs e algoritmos). Apesar de tudo, os desvalidos resistem e, de vez em quando, mostram que sonhar continua a ser possível.”

A Vice-Presidente eleita, Francia Márquez, saudou os “nadies” (“ninguéns da Colômbia”). Esta advogada de 41 anos, que foi empregada doméstica, hoje activista dos direitos humanos, ambientalista e feminista, é a primeira afro-colombiana a alcançar um dos mais altos cargos da nação. Segundo o AbrilAbril,citando uma entrevista à Rádio Caracol, de Fevereiro passado, a nova Vice-Presidente disse “…que seria a voz dos ninguéns na Casa de Nariño: «Nós não somos uma minoria, isso é o que as 47 famílias que governaram este país nos fizeram crer. Se devemos ter medo de alguém, é da elite que nos tem governado e que governou de costas para o povo, de costas para a sua gente, e que nos submeteu à barbárie e ao medo. Na minha região [o Cauca] não pára a violência, não pára o conflito armado porque há quem tenha semeado medo para manter-se no poder, para nos vender segurança democrática. Isso é o que tenho visto na política. Eu nem era política, era uma líder social que estava na luta. Mas cansei-me de não ver mudanças para o meu país, não ver mudanças para as maiorias empobrecidas, não ver mudanças para as etnias, para as mulheres, para os povos originários, para os camponeses, não ver mudanças para as juventudes que saem à rua a exigir educação e os assassinam com as balas da pátria. Simplesmente estigmatizando-os como vândalos, terroristas, criminosos. Esses que foram “marcados”, os ninguéns – eu represento essas pessoas. Os ninguéns que não tiveram voz neste país.»

A realidade mostra hoje, uma América Latina diferente. Ao contrário da Europa e dos Estados Unidos, as forças progressistas estão de volta aos governos dos seus países: no México, na Argentina, na Bolívia, no Peru, nas Honduras e, mais recentemente no Chile, com a eleição de Gabriel Boric. Talvez a face mais visível de que o modelo de desenvolvimento neo-liberal tenha esgotado o seu potencial, nesta zona do mundo, após décadas de intervenção americana, directa ou indirecta.

Um sinal para a Europa?

About the Author

Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.