Alfredo Soares-Ferreira *
Os últimos dias têm impelido a discussão sobre diversas formas de fazer política. Situações diversas, quer na forma, quer no conteúdo, contribuem pelo menos para reactivar alguma análise e algumas tentativas de resposta, se bem que nem sempre alinhadas com a realidade. Existe uma certa tendência para a auto-justificação, para a auto-contemplação, bem patente nas posições dos comentadores políticos, a quem foi conferido o estatuto de “interpretadores” e à qual se submetem dirigentes partidários, comissários e membros dos executivos, reféns de uma retórica pobre, que, ao contrário do que seria de esperar, raramente é dotada da necessária aprendizagem.
Saber se a democracia burguesa entrou em colapso, ou se, por outro lado, foi a revolução que colapsou, poderá ser uma temática interessante de análise, particularmente num tempo de retrocesso civilizacional, uma vez que determinadas conquistas sociais dadas como adquiridas, são postas em causa. O sociólogo francês Lucien Goldmann admite que existe uma certa deformação cultural na nossa civilização, que contribui para a fragmentação do conhecimento, até à negação do mundo na sua totalidade, como sistema complexo em movimento. Na sua obra de crítica filosófica, “Le dieu caché”, de 1955, Goldmann consegue encontrar uma das chaves da reprodução da opressão burguesa e um caminho possível para nos emanciparmos dela e que passará pela recuperação da percepção da realidade como um conjunto amplo, plural, coerente, contraditório e dinâmico. A tese de Goldmann seria explorada, na actualidade, pelo sociólogo e pensador marxista brasileiro Michael Löwy, ao chamar a atenção para a preocupação diante do vazio moral criado pela civilização individualista-burguesa e por aquilo que designa de indiferença axiológica do capitalismo, que, quando ameaçado, se adapta perfeitamente ao fascismo e à barbárie.
“A revolução é uma relação entre expectativas e audácia..”
Alan Woods
O colapso da democracia burguesa parece ser o factor a ter em linha de conta para uma análise interpretativa rigorosa da sociedade do tempo presente. Que implica um conhecimento profundo dos fenómenos e movimentos sociais e, para além disso, um ajuste temporal das condições para o renascer dos ideais revolucionários que defendem a reacção necessária contra o colapso. O activista político britânico Alan Woods é, neste contexto interpretativo, muito assertivo, baseando-se na tese que a revolução é uma relação entre expectativas e audácia. Numa entrevista de 2017, Woods afirma que a democracia burguesa é o sistema mais eficaz para controlar a classe trabalhadora e, na medida em que existe a ameaça da luta de classes, todos os países restringem os direitos cada vez mais. Lembrando o exemplo que constituiu a grande Revolução Russa, uma audácia que fez de 1917 um evento na história da humanidade, Woods diz que o que fracassou e provocou o colapso, não foi de forma alguma o Socialismo, mas sim um sistema burocrático e autoritário, após a morte de Lenine.
A tese de que uma insurreição pode explodir a qualquer momento, por qualquer motivo, em qualquer país e levar a qualquer lugar, é do Comité Invisível e marca muito provavelmente a primeira década deste século. Contém em si um desafio que é uma afronta ao designado modo de vida ocidental, povoado de sombras e de uma arrogância intangível. A Revolução acontecerá decerto quando as condições a proporcionarem. Passará de insurreição a revolução se interpretada por quem dela precisa para sobreviver, numa selva que já foi assim intitulada, cheia de perigos e artimanhas que o sistema vigente nem consegue já disfarçar. Sugere-se, na “Insurreição que vem”, obra daquele movimento de 2007, que as práticas e as ideias voltem a caminhar juntas em direcção oposta ao Capital.
Muitas e muito variadas são as posições sobre a questão da Revolução e do impacto previsível contra o colapso da democracia burguesa. Lembramos, evocando o seu contributo activo e militante, o economista e cientista político argentino Jorge Beinstein, que classificou a fase actual do capitalismo como “estágio de decadência sistémica”. E também, um Homem da Modernidade chamado Walter Benjamin, filósofo e sociólogo alemão, que associou a degradação ambiental ao modo de produção capitalista, ao provocar a ruptura na relação entre a humanidade e a natureza e sustentando como necessária uma utopia revolucionária, ou seja, a revolução para interromper a catástrofe iminente. E ainda, o filósofo alemão Jürgen Habermas, quando analisa a chamada “união europeia”, dizendo que a igualdade entre os estados-membros, apesar de consagrada nos tratados, foi completamente esquecida, falando num “inter-governamentalismo” dos chefes do euro-clube, que actuam nos bastidores, substituindo o normal funcionamento dos órgãos colegiais. Habermas sublinha que a UE está numa encruzilhada entre um aprofundamento da cooperação europeia e o abandono do euro.
Vendo o que se passa à nossa volta, nem será preciso encontrar muitos motivos para prenunciar o colapso. Num tempo em que os palestinianos são massacrados simplesmente por serem palestinianos, Yanis Varoufakis é banido na Alemanha e impedido de falar no Congresso Palestiniano em Berlim, entretanto proibido. O “farol” da UE mostra bem o colapso da democracia burguesa e o tipo de sociedade que se prepara. Lembrar hoje um qualquer cenário como a “noite dos cristais”, não é de todo despiciendo.
Mesmo considerando as condições desfavoráveis, é manifestamente exagerado falar no colapso da Revolução. Por isso mesmo, há que dar a merecida resposta aos manequins de gravata e fato cinzento que poluem a vida política do Ocidente, limitando e impedindo muitas vezes a discussão política. É deles a grande responsabilidade pelo descontentamento generalizado e pelo colapso. Não será com eles que se fará a Revolução, dado que são manifestamente contra ela e contra todas as formas necessárias e urgentes de insubordinação e insurreição.
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