Este artigo faz parte da série “50 anos depois: Viva a Revolução dos Cravos!” que o Diário 560/Pressenza está a publicar desde meados de Março de 2024. A “Revolução dos Cravos” 1974-75 trouxe aos portugueses a liberdade após 48 anos de fascismo, e às colónias portuguesas de África a independência após 500 anos de domínio colonial. E foi, não por último, uma experiência única de socialismo de base, durante um ano e meio, um horizonte de esperanças para o povo português!
Por Vasco Esteves / Pressenza *
Poucos dias antes do 25 de Abril de 2024, no mês em que os portugueses comemoram os 50 anos da libertação do fascismo, o encenador, dramaturgo e produtor de teatro português Tiago Rodrigues (que acumula atualmente também o cargo de Diretor do Festival Internacional de Teatro d’Avignon em França) trouxe à Schaubühne de Berlim a peça por ele escrita e encenada com o título de “Catarina e a beleza de matar fascistas“, que tem sido um sucesso não só em Portugal [N. do editor: na Culturgest], mas em toda a Europa!
A obra é apresentada oficialmente na internet assim:
“Esta família mata fascistas. É uma tradição antiga que cada membro do núcleo familiar sempre seguiu. Hoje, reúnem‑se novamente numa casa no campo, no Sul de Portugal. Uma das jovens da família, Catarina, vai matar o seu primeiro fascista, raptado de propósito para o efeito. No entanto, Catarina é incapaz de concretizar o homicídio ou recusa‑se a fazê‑lo. Estala assim o conflito, acompanhado de várias questões. O que é um fascista? Há lugar para a violência na luta por um mundo melhor? Podemos violar as regras da democracia para melhor a defender?
O espetáculo criado a partir deste texto, com encenação também de Tiago Rodrigues, foi apresentado com grande sucesso de crítica e público em várias salas portuguesas e em vários países, merecendo o Prémio de Melhor Espetáculo Estrangeiro em França e Itália.”
Nesta família, todos — até os homens! – que nasceram depois de iniciada essa macabra tradição, se chamam “Catarina” e vestem saias: Em homenagem à real Catarina Eufémia (foto ao lado), assassinada (quando tinha apenas 26 anos e estava grávida) em 1954 pelos fascistas da Guarda Nacional Republicana (GNR) em Baleizão (Alentejo/Portugal) durante uma luta dos trabalhadores agrícolas por um aumento dos seus salários. Catarina Eufémia, que encabeçou essa contestação laboral, tornou-se desde então no mais conhecido símbolo da resistência ao fascismo em Portugal, e ainda por cima num símbolo feminista!
Na peça, a família de resistentes ao fascismo iniciou a sua tradição de matar um fascista por ano logo em 1954, quando a bisavó matou o seu próprio marido: porque ele era da GNR, tinha assistido à morte da Catarina Eufémia e não a havia impedido! A tradição prolongou-se mesmo para além da libertação do fascismo em 1974, pois fascistas há-os infelizmente sempre, mesmo em democracia…
Tiago Rodrigues começou a escrever esta “fábula grotesca” em 2018 e estreou-a em 2020, numa altura em que tinha acabado de ser eleito para a Assembleia Nacional portuguesa o primeiro deputado da extrema-direita: Entretanto hoje, em 2024, após as eleições de Março, já totalizam 50! Uma prova de que matar fascistas não será talvez a melhor “terapia” para os combater?
Deve ter sido isso mesmo o que pensou Catarina, a bisneta mais velha da família, quando chegou a vez de matar também o seu primeiro fascista: nada mais nada menos do que um deputado da extrema-direita, especializado em escrever discursos para o chefe do seu partido, e como tal um excelente candidato para ser sacrificado. Embora ao princípio Catarina estivesse disposta em respeitar a tradição familiar, depressa foi assaltada por dúvidas sobre se o assassínio do homem estivesse bem. “As dúvidas entraram e instalaram-se em mim como um hóspede indesejado”, e não sabia como se livrar dessas dúvidas…
Ao fim e ao cabo, o condenado à morte, depois de muitas discussões em casa dos seus pretensiosos homicidas, acaba por escapar ao seu doloroso destino e, num gesto de entusiasmo incontido, termina por fazer um longo discurso populista que poderia entrar para um manual de discursos exemplares da extrema-direita. E fá-lo com tanto convicção que, ao fim de poucos minutos, uma parte do público começou a sair da sala, ou a apupar, ou mesmo a ameaçar invadir o palco (o que, segundo nos disseram, já tem acontecido)!
Esse discurso final representou, sem dúvida, o ponto máximos da noite de teatro. Um discurso para se estudar sobre a nova tática neoliberal-fascista, baseado em ideias como a de “nós somos a maioria, por isso é democrático se abolirmos os direitos humanos”, ou a de “podem mostrar-me todas as estatísticas que provem o contrário, mas isso nunca mudará o que eu sinto, e é isso que conta!”, ou a de “quando a ordem é injusta, a desordem é um princípio de justiça”, ou a de “as ruas estão cheias de minorias que lutam pela sua liberdade, por imporem a sua opinião”, etc.
De facto, é bem possível que um dia as elites capitalistas irão querer financiar esta nova extrema-direita, pois ela sabe melhor do que mais ninguém esgotar e virar do avesso os princípios democráticos, destruir a sociedade, virar o feitiço contra o feiticeiro, e garantir às ditas elites as máximas liberdades…
A peça de teatro baseia-se em oito personagens. É uma peça que está mais concentrada na coreografia, nos movimentos coordenados e geométricos das diferentes figuras, do que nos carácteres das mesmas. E sobretudo, o encenador Tiago Rodrigues transformou a peça numa “competição de debates centrada nos temas da liberdade, da justiça, da lealdade e da culpa”, dando à mesma um caráter claramente panfletário. Portanto muita coreografia e muitos discursos e diálogos longos, mas fraco enredo e pouca representação.
Quando Tiago Rodrigues levou a peça a Itália pela primeira vez, ainda antes da tomada do poder por parte dos fascistas “Fratelli d’Italia”, este partido lutou sem êxito mas afincadamente em Milão para que a peça fosse proibida. Entretanto, agora que os mesmos “Fratelli d’Italia” já são parte constituinte do novo governo, deixaram de protestar e mostram-se descontraídos. Será que o discurso final da peça os convenceu de vez?
* Vasco Esteves veio de Portugal para a Alemanha em 1969 como refugiado político. Em Portugal, foi dirigente estudantil, e na Alemanha lutou pelos direitos e pela organização dos imigrantes portugueses e apoiou mais tarde a Revolução dos Cravos em Portugal. Formado em Matemáticas, trabalhou na Alemanha 30 anos na informática. Vive atualmente em Berlim como ator. É considerado uma testemunha histórica sobretudo dos anos 60 e 70, quer da resistência contra o fascismo em Portugal, quer da primeira geração de imigrantes portugueses na Alemanha. Hoje escreve para a Pressenza Portugal.
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