Análise do ritmo do poder

Alfredo Soares-Ferreira *

A perda de legitimidade da análise é hoje uma constante. E só mesmo com um esforço significativo se consegue chegar ao patamar mínimo, que é a passagem do pensamento crítico à expressão falada ou escrita, de uma ideia, ou de um pensamento. Os argumentos que são utilizados na discussão política, não passam, na maior parte das vezes, de arrufos obliterados, de tão ténues na sua essência e de tão pobres na sua significância. É hoje vulgar, sobretudo na comunicação (dita) social encontrar, por um lado, um profundo desprezo pela racionalidade e, por outro lado, uma falta de ritmo que é normalmente associada a uma espécie de paragem na solução de continuidade que é congruente com o fluir das ondas e, consequentemente, se estende ao desenvolvimento do próprio pensamento criativo.

O Poder tem um ritmo que por vezes não é compatível com a situação política. Existe uma impossibilidade prática de separação dos ritmos que envolvem o investigador e o investigado, na sociedade urbana atual. Se atentarmos à agitação provocada pela demissão do Primeiro-Ministro em Portugal, identificamos de imediato um ritmo uniforme, que tem a ver com o imediatismo e o espectáculo da “crucificação” da pessoa que ocupa o cargo, ficando para trás outras variáveis, como por exemplo, as causas da demissão, ou um hipotético envolvimento com eventuais arguidos. O que parece importar é apenas quem lhe irá suceder, aparecendo os nomes habituais e mais alguns que entretanto são avançados pelos comentadores que pautam a agenda mediática e, consequentemente, a agenda política. Fora de qualquer análise está, como sempre, uma mudança de políticas, o necessário diálogo com os intervenientes para a resolução dos problemas nas mais diversas áreas, enfim, uma análise séria legitimada em pressupostos identificáveis. Não deixa de ser curioso constatar que a análise seja centrada em uma só pessoa, ao ponto de se questionar que lugar irá ocupar em Bruxelas, ou noutro qualquer centro de Poder, na dita “União”. Não deixa de ser curioso também o facto de ser o ritmo do Ministério Público, a pautar a agenda mediática.

A oportunidade que [o Ministério Público] escolheu para, na prática, derrubar um governo, sem se preocupar em formular qualquer acusação em concreto, é sintomática da tentativa de impor um ritmo próprio.

O final do século XIX e o início do século XX marcaram o nascimento de uma corrente filosófica designada “Ritmanálise”. O responsável pela autoria, foi o matemático e físico português Lúcio Pinheiro dos Santos, um Homem dotado de uma forte personalidade de grande capacidade pessoal e ainda de uma imensa combatividade cívica e política. A ele se associaram os conhecidos filósofos franceses Gaston Bachelard e Henri Lefebvre, ampliando estudos e investigação sobre a matéria, que entretanto carece de algum aprofundamento na actualidade, de forma a constituir-se como uma possível ferramenta, na análise e na retórica discursiva. Lefebvre fez, a partir da década de 1930, importantes estudos a respeito da imaginação na literatura e na produção de imagens literárias, a partir dos conceitos de ritmanálise, assinalando que a mesma, busca integrar através da noção de ritmo, tanto o que é social quanto o que é natural, para reconstituir uma unidade entre ambos. E sublinha a importância das rupturas sociais, porque é afinal a transformação da sociedade que está em jogo e que implica uma nova relação entre o espaço e o tempo. O critério adoptado é o das representações e decisões políticas. Na verdade, para haver mudanças, é preciso que um grupo social ou uma classe, intervenham, imprimindo um ritmo numa época, seja através de reformas, seja pela força. Segundo a sua tese, a ritmanálise tem como princípio a ideia de que a matéria não está inerte, indiferente ao tempo ou tão pouco numa duração uniforme.

Um dos objectivos da ritmanálise é de tratar das diferenças, das rupturas dos ritmos do quotidiano. É necessário dar a devida atenção à descontinuidade, através da combinação entre instante e ritmo.

O ritmo de vida actual substitui a “resistência” pela “resiliência”, a luta por direitos pelo conformismo, o diálogo pela aceitação tácita, a independência pela sujeição a poderes não-eleitos, a subordinação da economia à política pela financeirização e pelo poder da banca e do dinheiro, a livre expressão pelo condicionamento e, em alguns casos, pela auto-censura. Um vórtice imenso que transformou as democracias ocidentais em meros instrumentos onde dominam os burocratas e os censores, os notários e os banqueiros.

Ver hoje o organismo que tem por finalidade “garantir o direito à igualdade e a igualdade perante o Direito, bem como o rigoroso cumprimento das leis à luz dos princípios democráticos”, ao ritmo do mediatismo e do populismo, é deveras confrangedor. Sendo o Ministério Público, um órgão do poder judicial, que participa, com autonomia, na administração da justiça, com competência para exercer a acção penal, não pode ficar fora da análise cidadã.

A oportunidade que escolheu para, na prática, derrubar um governo, sem se preocupar em formular qualquer acusação em concreto, é sintomática da tentativa de impor um ritmo próprio. Que é devidamente marcado e corresponde a um movimento coordenado, uma sucessão regular dos tempos fortes, tal como na música. E que influencia, de forma emocional, uma sociedade, os seus comportamentos e actos, os seus anseios e esperanças, enfim, a sua vivência social e natural.

É o ritmo de um poder, que escapa seguramente às exigências prementes de uma Democracia, pelas piores razões, porque nega a sua essência de princípio unificador e escolhe deliberadamente o lado errado da existência.

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Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.

1 Comment on "Análise do ritmo do poder"

  1. Apenas para sublinhar a solidez do texto, que no essencial acompanho. Um excelente ângulo de análise para compreender o “buraco” que ameaça a democracia .

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