A vida continua…

As nossas dúvidas são traidoras e fazem-nos perder o que,
com frequência, poderíamos ganhar, por simples medo de arriscar

Shakespeare

Entretanto, a vida continua. Mesmo de uma forma estranha, como foi assinalado na crónica anterior. As pessoas continuam com os mesmos problemas do antes de uma guerra que não lhes diz respeito. Decididamente, no nosso País, os problemas continuam e agora são agravados porque alguém decidiu que tinha que ser assim, com preços a aumentarem, de tal forma que, para alguns cidadãos significa o aprofundar de uma pobreza que parece ter sido esquecida. Mais importante do que pintar tudo de azul e amarelo talvez fosse melhor ver o que se passa à nossa volta. E, para além de ver (muito importante), tentar fazer algo para mudar a realidade.

O que é que tem a ver com quê
Postula-se a verdade absoluta. É a guerra, estamos todos na guerra, temos que nos preparar para o pior, para o desastre, quiçá nuclear, os preços aumentam porque sim, é a energia, são os combustíveis, é o pão, são os cereais, tudo, absolutamente tudo. Porque, acima de tudo, a única coisa que não pode ser afectada é a margem de lucro das grandes empresas, dos grandes potentados que dominam o mundo. Ficamos hoje a saber, por exemplo, pelas palavras de um alto responsável pela auto-proclamada união europeia, que neste momento é todo o mundo “civilizado” que está em luta contra o agressor da humanidade. É absolutamente desnecessário, senão até ofensivo, dizer que, com esta e com qualquer outra “crise”, as grandes companhias aumentam os seus lucros, nomeadamente as do armamento. Nomeadamente, os Estados Unidos da América, que são os principais beneficiários da guerra, sendo o maior vendedor de armas do mundo, com 39% do mercado entre 2017 e 2021, segundo o SIPRI (Instituto Internacional de Pesquisas da Paz de Estocolmo). Esta é a realidade dos benificiários directos. E são hoje as grandes empresas que lucram indirectamente com a guerra, as que encabeçam movimentos contra a invasão e a agressão, naturalmente para ficar bem numa fotografia, que é a imagem podre da hipocrisia.

O que nunca se fez
A verdade é que o nosso País está hoje com um grave problema de subida generalizada de preços, supostamente devida à guerra. Claro que se trata de uma falácia. Como é possível entender, por exemplo, que passadas uma ou duas semanas sobre o 24 de Fevereiro, já os preços haviam aumentado? Particularmente nos combustíveis, onde o desmesurado aumento, faz subir tudo o que com ele se relaciona, directa ou indirectamente. Depois, os aumentos na electricidade e no gás, que condicionam a vida dos cidadãos, particularmente os mais carenciados. Esta é a imagem do País, com os salários mais baixos da Europa e com os preços mais altos. Todas as explicações dadas pelo Governo e responsáveis dos reguladores, na retórica habitual, soam simplesmente a falso.

Veja-se o caso dos combustíveis. Sobem de preço quando aumenta o barril de petróleo, mas não baixam quando aquele desce. O resultado está à vista, batemos todos os recordes da europa, nos combustíveis.
Veja-se agora o caso da energia. Portugal está hoje dependente da Espanha, os números indiciam que aquele país vende ao nosso a electricidade de Almaraz por valores superiores a 10 milhões de euro por dia. Portugal é um dos países europeus com os maiores níveis de pobreza energética, só este dado significa, por exemplo, que ainda há quem morra de frio no Inverno porque não tem possibilidade de aquecer a sua casa.

Mas nunca se fez, de facto, uma verdadeira política de combate à pobreza, apesar das múltiplas declarações de intenção. Esta é a altura (mais uma) para se dizer, nunca é demais repetir. Mesmo na vigência dos governos pós-troika, com as tímidas medidas designadas de “reposição de rendimentos”. Nunca se conseguiu repor, uma vez que a subida de custo de vida nunca foi acompanhada da necessária subida de salários. Mas, entretanto, continuou (ou mesmo agravou) a política rentista de protecção das grandes distribuidoras, para além da banca, dos combustíveis e das rodoviárias, todos são “protegidos” por um Estado que lhes paga apenas por existirem e por eventualmente terem mais direitos que nos cidadãos, que também lhes pagam. Seria difícil conseguir melhor, em termos de benefícios. Mas, sabe-se bem, eles sempre exigem mais. E quando se protegem os grandes interesses instalados, agrava-se cada vez mais o fosso entre ricos e pobres. Não é possível proteger aos mesmo tempo interesses que são, como sempre o foram, antagónicos.

O que deve (e tem que) ser feito
A lista do que é preciso fazer não tem limites, uma vez que, como se procurou exemplificar, pouco, ou nada, de relevante foi feito. Hoje alguém se lembrou de declarar um outro estado de excepção, supostamente um “estado de guerra” contra um inimigo fantasma que os ideólogos do pensamento único decidiram instalar e que serve para tentar levar os cidadãos a concluir da necessidade de investir mais na “segurança” e na “defesa do País”. Este suposto desígnio implica, segundo os defensores da tese, prescindir de algo para suprir essa suposta necessidade. Isto dito a pessoas e famílias, que vivem abaixo do limiar de pobreza (praticamente 20% dos cidadãos), é simplesmente obsceno.

Na verdade, não é isso que deve ser feito. Apontamos algumas medidas imediatas que ficam à consideração do novo Governo que aí vem. Travar a especulação é o que se exige. E uma das exigências passa por uma política de formação de preços que proteja os cidadãos, particularmente os que mais necessitam de protecção. Que, em alguns casos, tem que ser a fixação, pura e simples, dos preços máximos. Uma outra, mais abrangente, tem a ver com o combate ao rentismo. Não é admissível que existam empresas que lucram desmesuradamente com as crises, sejam elas pandémicas, ou económicas, derivadas de alguma escassez, como a que resulta de conflitos e guerras. Em particular, exige-se uma baixa imediata e acentuada do IVA, na electricidade e no gás, bem como o fim da dupla tributação, que ora se verifica, por exemplo na formação do preço dos combustíveis, onde o IVA é calculado sobre o ISP (Imposto sobre os Produtos Petrolíferos).

E, como a vida continua…
E continua com o mesmo problema de sempre, a distribuição de rendimentos, no nosso País. É uma das formas de manter as desigualdades, o que significa, por acréscimo, que elas, para além de se manterem, agravam-se cada vez mais. Qual a resposta, ou respostas? Aquelas que até agora foram dadas, não são, de forma alguma, suficientes.

Para os responsáveis das diversas governações, há que “…manter as contas certas”, porque há uma dívida que tem se pagar, que se mantém teimosamente e se amplifica de cada vez que um imprevisto acontece. Só não se diz (nunca se diz) de que dívida se trata, de quem é a dívida, quem a contraiu e como se acumulou essa dívida. Para os cidadãos que pagam os seus impostos e que vivem do seu trabalho, a maior parte das vezes, mal remunerado, esse discurso nada lhes diz, antes pelo contrário. E, para aqueles que não têm trabalho e para aqueles outros que vivem com uma parca reforma, ainda menos. Insatisfeitos, uns e outros, não conseguem ver saída alguma. Desistem, em grande parte dos casos. A tal democracia de que lhes falam, não os convence, porque, na prática, não há respostas. Para que a vida possa continuar, tem que haver respostas.
Entretanto, arriscamos. Antes que seja tarde.

About the Author

Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.