“Monstros e homens lado a lado
Não à margem, mas na própria vida
Absurdos monstros que circulam
Quase honestamente…”
“Ao Rosto Vulgar dos Dias” (1958), “No Reino da Dinamarca”, Alexandre O`Neill
Notícias que nos vão dando conta de avanços e recuos numa guerra que nos querem impor como global e que nos tortura com o mais despudorado aumento de preços de que há memória. São as cores que nos querem convencer que são as nossas, porque – pasme-se – se trata de “pessoas como nós, brancas e civilizadas”. São as mais torpes mentiras sobre um conflito que foi alcandorado como do século, com o maior fechamento do outro lado, colocando-nos na posição mais fácil e, todavia, mais penosa, a de “escolher” o “lado bom”, porque o outro é simplesmente proscrito. É uma teia de proporções gigantescas, urdida pelas empresas de comunicação social, ao serviço do objectivo central da construção do edifício iníquo do pensamento único. É a voragem mediática da notícia-espectáculo, servida de manhã á noite, nas rádios e TV, apoiada por verdeiros artistas da propaganda.
Por Alfredo Soares-Ferreira
O cidadão e os monstros
Quem está nas melhores condições para distinguir o que é verdade, ou não? Onde está a verdade? Ainda que pudéssemos ter hipótese de avançar uma posição crítica, baseada na interpretação histórica e na análise factual, o certo é que não é possível fazer tal, sem ser apelidado de traidor ao sagrado ocidente, ou simplesmente pró-russo.
Quem entra (ou não) na voragem? Quem é engolido (ou se deixa engolir) por ela? Quem é trucidado? Quem o quer ser? Tantas questões, tão poucas certezas, ou sequer factos que nos ajudem a formar uma posição. O cidadão indefeso é levado a formar uma opinião, não pela análise crítica e inteligente, mas pelo matraquear constante e permanente de imagens e frases-chave, muito bem conseguidas, eivadas de um populismo primário e perigoso, porque essencialmente bélico e terrorista.
Querem convencer-nos que estamos em guerra
Ao condenar a invasão russa, como inqualificável acto de invasão de um estado soberano, estamos a tomar uma posição declarada e unívoca contra o invasor. Ao mesmo tempo, estamos a classificar aquela invasão, como um conflito regional, que tem a ver com os dois países beligerantes, a Rússia e a Ucrânia. O nosso País, por exemplo, nada tem a ver com aquele conflito e a única posição legítima que deve tomar é a defesa de uma solução negociada, nos estritos limites da sua acção diplomática e na defesa do princípio da defesa da paz entre as nações. Aliás, no espírito das Nações Unidas, na defesa daquele princípio. De momento, só parece haver um caminho para a paz, que passa por negociações sérias, que incluam as regiões da Ucrânia onde a população é maioritariamente russa e pela desistência da Ucrânia em integrar a NATO. Tudo o que vá para além disto, é simplesmente alimentar a guerra.
Ora, o que está a acontecer, desde o início do conflito, é exactamente o contrário. A Europa está completa e unilateralmente nas mãos dos americanos e da política belicista e expansionista da NATO, em claro desrespeito pelas leis internacionais e de todos os acordos firmados após o desmantelamento da URSS. Esta atitude, de apoio cego e incondicional à Ucrânia, nunca vista em relação a qualquer país que tenha sofrido uma invasão ilegítima (exemplos conhecidos), é aduzida do apoio militar indiscriminado, em material e meios humanos, muito para além da ajuda, absolutamente indispensável, aos refugiados.
E esta é a enorme vantagem dos EUA, o negócio do armamento e agora do gás. Assim se entende a política externa americana, que se caracteriza (agora e sempre) pelo instigar de qualquer conflito. A protecção à indústria e comércio de armamento está, para os americanos, sempre acima de tudo, incluindo os Direitos Humanos. Esta é para eles, por assim dizer, uma guerra conveniente.
Bucha releva hoje a questão dos crimes de guerra
Pelo que nos é dado ver e ouvir, as duas versões do que se passou, revelam os monstros e do que são capazes. Revelam, em primeira instância, alguma incoerência, datada e factual. Será de admitir, sem qualquer investigação independente, ter havido mais um crime de guerra, a juntar a todos os outros, cometidos pelo agressor russo, como sustenta a Ucrânia, os EUA e toda a chamada União Europeia? Ou, por outro lado, será legítimo pensar numa “terrível encenação” de um massacre, posição sustentada pela Rússia e por alguns analistas militares? Será crível que existe de facto uma poderosa máquina de propaganda russa, que, para além de fabricar factos e cenários, adultera sistemática e voluntariamente a informação, da guerra e não só? A mesma questão, exactamente nos mesmos termos, para o designado Ocidente, os EUA, a NATO e a UE. Seria porventura sensato ler e ouvir os dois registos e tentar relativizar, sem esquecer a questão central: quem perpetrou uma agressão contra o estado soberano da Ucrânia foi a Rússia. E perceber que, para já, apenas nos é permitida a legítima interrogação: em quem acreditamos e que meios temos à disposição para formular um juízo justo? Entretanto deveremos pensar, antes da necessária investigação, que os tais “indicadores claros” dos chamados crimes de guerra do exército russo (porque quando se fala de crimes de guerra têm de ser russos…) fazem lembrar a evidência clara das armas de destruição maciça no Iraque?
As “terríveis” sanções
As sanções são a pior medida possível, apenas servem para empobrecer os trabalhadores de toda a Europa, Ucrânia e Rússia incluídas, embora se saiba que a Rússia tem autonomia alimentar e já estaria preparada para a guerra. As sanções acabam por justificar os escandalosos aumentos de preços dos combustíveis, da energia e dos bens essenciais, penalizando sempre os mesmos, os cidadãos mais carenciados e os povos dos países mais pobres. O cidadão comum, por exemplo no nosso País, perguntará com todo sentido, se por acaso provocamos alguma guerra para estarmos a ser atingidos pelas sanções? As sanções, que curiosamente deixam de fora, 70% das exportações russas, o petróleo, o gás e os combustíveis, de que depende a indústria alemã, abatem-se afinal sobre os povos e sobre a própria oposição russa. As sanções, aliadas à efectiva venda de armas da UE à Ucrânia e que nada têm a ver com a propalada ajuda humanitária, são finalmente uma punição para aqueles que lutam pela Paz, em toda a Europa e uma entrada, ainda que indirecta, da Europa nesta guerra. Pelos vistos, segundo informação do ministro Cravinho, o governo de Portugal entra neste jogo perigoso, porque ofensivo e bélico.
Envolvidos na teia
Há uma teia que alguém tece por nós, que já não tecemos nada que seja nosso, ou para nós. Temos sim opinião livre, ou não? Falamos à-vontade ou nem por isso? Mas será que nos vamos auto-limitando, porque às tantas vamos favorecer algo que não estamos a ver? Afinal quem somos nós, para enfrentar de caras tanta hipocrisia? A doxa ocidental, contrária ao livre pensamento e apenas ligada a percepções ou sentimentos, quer mesmo forçar-nos a entrar na guerra. Reparemos em alguns exemplos curiosos, que ilustram um dramatismo forjado para o envolvimento: as televisões, que passam, todos os dias, as mesmas imagens (às vezes falseadas) e uma rádio (TSF) que tem um programa diário de 30 minutos, a que chama “conselho de guerra” e informa durante todo o dia a hora e o tempo na Ucrânia!
É uma teia cuidadosamente fabricada, de contornos e fios débeis, suave e discreta como convém nas chamadas democracias liberais. Por vezes nem damos conta disso e pensamos que é mais confortável ficar dentro dela que tentar a libertação pessoal, que nos daria seguramente outro gozo, mas certamente muito mais trabalho. Talvez por isso, a luta pela paz exige muito mais e é mais fácil adoptar o discurso bélico, que alguém já “teceu” para nós. Ao fim e ao cabo, a Paz não passa de uma utopia e, quem a defende ou é pró-russo ou equiparado.
A libertação da teia não depende só de nós. Mas pode começar por uma mudança de atitude e de discurso.