A solidão da força de trabalho

Alfredo Soares-Ferreira *

O pensador brasileiro Rubem Alves escreveu, em 1972, uma obra premonitória, a que chamou “A gestação do futuro“. Nela afirmava que a humanidade é avaliada pela quantidade, particularmente no que reporta à produção. Dessa forma se induz uma visão quantitativa do mundo, a perspectiva que melhor se adequa a uma ordem social orientada na direcção da manipulação das coisas e das pessoas, um futuro assustador, em que o homem se vê impotente perante a realidade. Falava, já nessa altura, num mundo doente, em que tudo é substituído e validado conforme o lucro que se pode obter. Frontalmente dizia que o mundo ocidental aliena as pessoas dos ritmos naturais dos seus corpos para que operem de acordo com o ritmo do sistema.

Rubem escreve e teoriza sobre realidades que o Ocidente sistematicamente esquece, como sejam, por exemplo, as tentativas de libertação do jugo capitalista da América Latina. Que aliás apostou em reprimir e que hoje constituem um estigma para os que acreditam na superioridade de um mundo decadente e corrupto, mas sempre em pé, na imponência de quem pensa deter a verdade única, aquilo que Rubem sempre tentou combater. Numa crónica de 2008, “A Solidão Amiga”, fala das fantasias que surgem na solidão e evoca o “Operário em Construção” de Vinicius de Moraes: “… certo dia, à mesa, ao cortar o pão, o operário foi tomado de uma súbita emoção ao constatar assombrado que tudo naquela casa – garrafa, prato, facão – era ele que os fazia, ele, um humilde operário, um operário em construção…”

Vem isto a propósito das últimas investidas neoliberais em Portugal. Falamos das medidas propostas ao Governo pela Confederação Empresarial de Portugal (CIP), sob a designação curiosa de “Pacto Social”. São 30 medidas, entre as quais o pagamento voluntário pelas empresas do 15.º mês aos trabalhadores, isento de contribuições e impostos. Classificadas como “…uma medida extraordinária de liquidez para as famílias, que passa por testar, em 2024 e 2025, um incremento salarial de 14,75% nos salários (um aumento da liquidez em 4,75%, sendo os restantes 10% incluídos num plano individual de reforma), com redução temporária da Taxa Social Única (TSU)”.

A narrativa neoliberal, apoiada na falsa ideia de que os salários cresceram até hoje acima da produtividade, serve de facto para justificar as políticas de baixos salários e enfraquecer o lado do trabalho.

Serão porém, mais “Uma floresta de enganos e ilusões que, aparentando preocupação com os salários e os trabalhadores numa situação de grave inflação, constituem de facto uma operação bem montada e perigosa de transferência de mais rendimento e mais recursos públicos para o bolso dos patrões e de tentativa de abrir a porta a mudanças estruturais no sistema de pensões”. Assim as classifica Henrique Sousa, Coordenador da Associação Práxis, em artigo de 25 de Setembro.

Entretanto, as medidas da CIP foram aplaudidas pela Direita organizada, nesta confederação de patrões, nos partidos da Direita, na comunicação social e, por estranho que possa parecer, num Governo que se apresentou ao País como a Esquerda verdadeira. Ao que parece, o Governo irá provavelmente “embarcar” nesta medida encantatória, firmemente apoiada na defesa e manutenção dos privilégios da classe dominante.

O artigo citado denuncia ainda o que classifica como um “ridículo acrítico e superficial” o facto que esconde a verdadeira intenção de “…anestesiar a opinião pública e os trabalhadores em dificuldades, agitando a miragem de algum benefício imediato nos rendimentos líquidos”, levando a opinião pública a acreditar que estas propostas ultrapassariam as justas exigências dos trabalhadores e dos seus Sindicatos.

Acontece ainda que, ao contrário do que pretendem os palradores habituais, a questão salarial é eminentemente política. E que são irrelevantes e enganadores os indicadores sobre a produtividade e o crescimento económico. O que deve ser dito é que, por um lado, existem todas as condições para aumentar os salários e, por outro lado, devem ser imediatamente revogadas todas as normas gravosas da legislação laboral, posição veementemente assumida por Isabel Camarinha, Secretária-Geral da CGTP.

Violência à Greve das Conserveiras em Setúbal, 1911.

A narrativa neoliberal, apoiada na falsa ideia de que os salários cresceram até hoje acima da produtividade, serve de facto para justificar as políticas de baixos salários e enfraquecer o lado do trabalho.

Estaremos hoje provavelmente condenados a uma espécie de solidão inimiga, ao contrário da invocada por Rubem. Uma solidão da voz do Trabalho, ofuscada (como sempre acontece) pela propaganda patronal, muito bem organizada, particularmente no que concerne à ilusão e à manipulação. Enganadora, porque falsa, na sua essência e na sua prática. Uma hipotética “solidão da força do trabalho”, não é senão uma condenação ao silêncio forçado da voz daqueles que raramente têm voz, uma situação de carência absoluta dos trabalhadores, cada vez mais solitários nesta sociedade do desperdício.

Rubem Alves insistiu, na sua vasta obra, na necessidade de por um lado, usar a imaginação e, por outro lado, uma nova linguagem e um novo discurso. De certa forma, uma espécie de anti-poder. Rompendo em definitivo com a igreja brasileira institucional, distanciando-se dos teólogos da chamada pedagogia da libertação, entrando em conflito com o marxismo, manteve contudo sempre a “crença” na humanização e nos direitos de quem trabalha. Por isso, defendeu, na obra citada, a abolição das condições dominantes do poder.

Olhando para trás, mais de 50 anos passados, a defesa da dignidade do trabalho terá forçosamente de abordar aquela premissa, como decisiva para a arquitectura de um novo poder, incompatível com o que determina a exploração e a dominação neoliberal. Qualquer consideração que não leva em linha de conta esta “condição” estará condenada ao fracasso.

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Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.

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