A resposta europeia de uma Urs[ul]a menor (O discurso)

Alfredo Soares-Ferreira *

A 17 de Setembro passado, a Presidente da Comissão Europeia, apresentou, com pompa e circunstância, o designado “discurso do estado da união”. Há algum tempo que a UE imita os americanos, nesta iniciativa. Diga-se contudo que não faz qualquer sentido, atendendo à formalidade da questão, uma vez que aquele país é, do ponto de vista constitucional, uma federação de estados. Não existe na dita UE estatuto semelhante.

O único estado possivelmente digno de referência é a mais completa desigualdade, diferenciação e submissão aos interesses das grandes corporações, empresariais, bancárias e financeiras de que há memória nos últimos cinquenta anos.

O delírio da constelação neoliberal, no qual a dita senhora desempenha um papel menor, pretende fazer esquecer duas verdades irrefutáveis. A primeira tem a ver com a diferenciação substantiva entre os directórios dentro da Comissão, onde apenas alguns têm peso político e os restantes destinam-se a manter a ilusão de que servem para qualquer coisa. A segunda, reporta à ausência de controle financeiro, como se pode demonstrar pela falha nas auditorias anuais do Tribunal de Contas Europeu, o que implica que, ano após ano, existam escândalos de corrupção, como aconteceu em 2002, em que o OLAF (Organismo Europeu de Luta Antifraude) descobriu mais de dez mil casos de apropriação indevida. Já no decorrer de 2023, um outro caso de possíveis irregularidades na execução de um projecto de infraestrutura ferroviária na Bulgária, onde os valores em causa ascendem a 140 milhões de euros. Assim vai o estado da União, sobre o qual Ursula nada tem a dizer, a não ser uma banalidade como esta: “este será um momento para as pessoas reflectirem no estado da nossa União e no trabalho realizado por aqueles que as representam”.

Estamos cientes de que
o regresso à meta de
médio prazo do BCE
levará algum tempo”.
A tradução desta convicção
é bem clara: essa estrutura
não-eleita (BCE) […]
continuará a obrigar os cidadãos
a entregarem aos bancos
o pouco que lhes resta
do seu parco rendimento.

Ursula foi eleita, em 2022, pela revista norte-americana Forbes, para o cargo “a mulher mais poderosa do mundo”. A senhora representa assim muito bem a dita revista de economia e negócios. Em boa verdade, é aos EUA que a senhora presta o devido reconhecimento, tendo considerado no seu discurso, o exemplo, de “sete grandes empresas tecnológicas” que “já aderiram a regras voluntárias de segurança, protecção e confiança”, leia-se, sujeição à vigilância electrónica forçada e a quebra de direitos pessoais, privacidade e de abuso das respectivas entidades patronais.

A propósito de governação, afirma que “Estamos actualmente a lançar as bases para um sistema de governação único na Europa”. Sabendo-se da capacidade desta comissão para promover a segurança e a paz na Europa, esta intenção não deixa de ser simplesmente assustadora.

Sob a questão de direitos, diz que “A resposta da Europa foi tornar-se na pioneira mundial dos direitos dos cidadãos no mundo digital”. Procurando a razão de ser dessa afirmação, encontramos esta hilariante explicação: “O Regulamento dos Serviços Digitais e o Regulamento dos Mercados Digitais estão a criar um espaço digital mais seguro no qual se protegem os direitos fundamentais. E garantem a equidade, com responsabilidades claras para as grandes empresas tecnológicas”.

Esta subida de juros parece normal?

Relativamente às questões comerciais, Ursula garante que “…continuaremos a impulsionar um comércio aberto e justo”. Conhecendo a forma como estas questões são tratadas, com total desprezo pelos cidadãos, que pagam cada vez mais pelos bens essenciais e de consumo, estaremos entendidos. Aliás, é de temer mesmo o pior cenário possível. Na sua obsessão por tudo o que possa cheirar a chineses, russos e outros seres que não sejam de uma suposta raça pura europeia, a senhora diz, “Basta pensar nas restrições impostas pela China às exportações de gálio e germânio … vitais para produtos como os semicondutores e os painéis solares”. E vai mais longe, no seu delírio, constatando que “…os mercados mundiais estão agora inundados de automóveis eléctricos chineses mais baratos” e que, por essa razão se trata de uma prática que gera “distorções no nosso mercado” e que como tal necessita de um correctivo severo: “…hoje estou em condições de vos anunciar que a Comissão dará início a um inquérito anti-subvenções relativamente aos veículos eléctricos provenientes da China”. Para esta mente iluminada, os problemas da Europa estão do outro lado: “Não nos esquecemos de como as práticas comerciais desleais da China afectaram a nossa indústria solar”.

Contudo, o maior desvario acontece quando a senhora fala sobre a situação económica e financeira da Europa, ou melhor, do designado espaço económico europeu, subordinado à ditadura da moeda única. Diz então Ursula, que, face à “elevada inflação persistente”, “Christine Lagarde e o Banco Central Europeu estão a trabalhar arduamente para manter a inflação sob controlo” e que “Estamos cientes de que o regresso à meta de médio prazo do BCE levará algum tempo”. A tradução desta convicção é bem clara: essa estrutura não-eleita (BCE), apenas controlada pelos grandes interesses financeiros, continuará a obrigar os cidadãos a entregarem aos bancos o pouco que lhes resta do seu parco rendimento, enquanto eles (bancos) continuam a engordar com os lucros astronómicos que não páram de aumentar, porque a culpa da inflação é deles (cidadãos) e devem ser por isso continuamente penalizados e devidamente castigados.

No seu discurso ilusório e demagógico, provavelmente a pedir um novo mandato, Ursula não teve uma palavra sobre a contínua degradação dos serviços públicos. A demagogia ganha foros de alucinação, quando afirma que quer “Um continente unido na liberdade e na paz”. Paz é exactamente uma palavra que Ursula deveria respeitar e que é vilipendiada todos os dias, na ânsia de um propalado alargamento, “…não podemos — e não devemos — esperar por alterações ao Tratado para avançar com o alargamento”.

Freud terá afirmado que as massas nunca tiveram sede de verdade, preferindo viver de ilusões. Será esse um excelente suporte para a retórica ilusória desta figura menor. [Continua]

(Foto: Directorate-General for Memes, Satire and Sober Fun)

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Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.

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