A necessária revolta contra o “factor F”

Alfredo Soares-Ferreira *

O tempo da revolta parece despontar, como contraponto às novas tendências. As que trazem de volta memórias perdidas de vidas passadas, de tristes episódios e de funestas intenções. As que fazem do fenómeno político um palco para o espectáculo e o transmutam para a esfera absurda da subpolítica, classificação recente, cunhada pelo sociólogo alemão Ulrich Beck, que incorpora a influência de agentes externos ao sistema político e que determina nos nossos dias uma capacidade de decisão diversa, na estruturação e no planeamento sociais e ainda na entrada em cena de novos agentes, os quais por sua vez querem mostrar um insuportável protagonismo.

Neste estádio de desenvolvimento das sociedades hodiernas, a política “normal” tem mostrado a sua inoperância, uma vez que que os resultados esperados deixaram de ser alcançados. As decisões são tomadas à medida de alterações conjunturais e os decisores são, em grande parte dos casos, burocratas de carreira ligados, directa ou indirectamente, a interesses conhecidos e manifestos.

O resultado prático deste tipo de fazer política conduz invariavelmente à insatisfação dos cidadãos e a uma adesão a teses primárias, que determinam atitudes de condenação na generalidade e a um condicionamento evidente na escolha, uma vez que, na base está a diabolização de todos, que se manifesta em expressões populares, cada vez mais ouvidas: “são todos iguais”, “está tudo a roubar”, “querem é ir para lá, para encherem os bolsos”.

O saber é reduzido à mercadoria e em que a cultura se transforma em “pseudocultura”, torna-se permeável à proliferação do mediatismo fácil e ao fascínio pelo fascismo

O filósofo e sociólogo alemão Theodor Adorno, uma das figuras gratas da Escola de Frankfurt, desenvolveu, no final dos anos quarenta do século passado, o conceito de “personalidade autoritária”, a propósito da propaganda fascista e sobre as possíveis condições de aceitação das ideias que lhe estavam subjacentes. Uma sociedade esvaziada de conteúdos reais e em que, segundo Adorno, o saber é reduzido à mercadoria e em que a cultura se transforma em “pseudocultura“, torna-se permeável à proliferação do mediatismo fácil e ao fascínio pelo fascismo, que ele classificou de “factor F”. Transportando-nos para os anos vinte deste século, podemos encontrar neste factor a personificação de um inimigo absoluto na Esquerda e nos seus representantes. É notória em demasia a tentativa do afastamento das associações políticas e dos partidos de Esquerda da esfera do Poder, consubstanciadas na assunção formal das teses da Direita pela comunicação social. A forma mais subtil, recentemente assumida, é a da imposição da designada “moderação” a representantes políticos, “condenando-os” no caso de não serem “moderados” a um exílio forçado naquilo que classificam, de forma pejorativa, de “extrema-esquerda”.

Foto: Brandon MacDermit/Salon

A única hipótese que resta é mesmo a revolta contra o “Factor F”, personificada num combate feroz, em termos pedagógicos, mas não só. Começar por ensaiar um discurso diferente e uma atitude activa, sabendo à partida que não é fácil o combate contra a “fascinação” e a irracionalidade. Há várias organizações que têm vindo a ensaiar este combate, com formas de luta interessantes, embora nenhuma delas deva excluir o combate principal contra o que é o neoliberalismo ascendente. Um exemplo significativo é o Comité Invisível, um colectivo sediado em França, que publicou em 2007 uma primeira obra denominada “A insurreição que vem”, associada directamente ao caso dos prisioneiros de Tarnac, a propósito da investigação sobre a sabotagem do TGV e que nos convoca a pensar sobre o “carácter movediço do poder na actualidade e sua complexa rede de infraestruturas”.

Os exemplos recentes da revolta estão um pouco por todo lado, ainda sem um fio condutor que os possa considerar inseridos na perspectiva de uma luta internacionalista conta o capital. Contudo, Occupy Wall Street foi um sinal, Paris esteve este ano a arder, o Brasil rejeitou o fascismo e há quem associe a ideia de revolta à ascensão dos BRICS, nas esferas de decisão.

O combate que se impõe contra o “Factor F” é pela institucionalização do conhecimento, do saber e da inteligência.

A filósofa italiana Donatella Di Cesare faz, em 2021, um elogio da revolta, na sua obra “O Tempo da Revolta”, dizendo-nos que ele vai mais longe, questionando os contornos habituais dos espaços conhecidos, evocando a resistência e a revolução perdida e lembrando que existem hoje novos e muitos desobedientes que exigem o direito de aparecer e entrar no espaço público. A autora denuncia de certa forma a subpolítica, assinalando zonas de irresponsabilidade e falando da revolta como um acontecimento não efémero e que se vai entranhando com base numa desvinculação da arquitectura política.

Valerá a pena hoje recordar uma declaração explosiva de Antero de Quental, datada de 1868, sobre revolta: “A Universidade só iluminará o povo, no dia em que lhe pegarem fogo“. Um combate que, um século depois, iria “proporcionar” o Maio de 68 em França. Uma semente.

O combate que se impõe contra o “Factor F” é pela institucionalização do conhecimento, do saber e da inteligência. Necessariamente contra a irracionalidade e, em certa medida, contra a estupidificação crescente do espaço mediático que, em vez de filtrar, vive da tendência forçada para a “moderação”, uma mentira generalizada. Que vive sobretudo da ignorância e do fascínio.

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Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.

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