Alfredo Soares-Ferreira *
Do que se vem sabendo, através de notícias recentes, a reescrita de livros e a proibição de outros constituem-se como fenómenos de ataque à cultura da palavra e fazem temer uma nova era que, apesar de contornos ainda pouco definidos, não será decerto de merecer nem confiança, nem sequer respeito, muito menos esperança. De inconveniente considerada, a linguagem contida e inerente a obras cujo valor nem sequer está em causa, passa, depois de “aperfeiçoada” pelos escribas modernos, a ser conveniente aos olhos de uma sociedade que precisa estar mais atenta a tentativas “revisionistas” e manifestamente indignas da modernidade.
Sabendo-se da tendência do politicamente correcto e das virtudes consignadas por posições desta natureza, bem como dos seus resultados práticos, na produção de um discurso cinzento e asséptico, nem nos espantamos com propostas deveras abstrusas, para adaptar a linguagem a um estilo de uma manifesta sanha censória, bem ao gosto das correntes ultra-conservadoras que pretendem um recuo civilizacional sem precedentes na era moderna. Há quem as enquadre hoje numa possível “guerra cultural” e as associe a outras manifestações de manipulação das consciências e à deturpação da realidade, coisas que se têm visto por aí, intensificadas, ou aparentemente justificadas por eventos recentes como a pandemia e a guerra. Será, como adianta António Guerreiro, num artigo de Março passado no jornal Público, uma tendência que se encontra na política e que, na sua opinião, consiste numa certa deturpação do debate político, transformando-o numa “construção recíproca de caricaturas” e afastando de vez o necessário debate ideológico substantivo.
Recorremos a um artigo de Rogério Casanova, no jornal Público, que cita e aproveita um ensaio do ensaísta e teólogo irlandês Clive S. Lewis, datado de 1944. Nele, o Autor destaca as afirmações, “Palavras originalmente descritivas tendem a tornar-se termos de louvor ou crítica. O vocabulário do elogio e do insulto é continuamente expandido à custa do vocabulário de definição. As palavras, no seu declínio, limitam-se a engrossar o vasto caudal de sinónimos para bom ou mau”, para concluir que “A crença na magia profiláctica de substituir umas palavras por outras é infantil, mas não é inocente. Reconhece uma propriedade universal da linguagem”. Nesse artigo, de Fevereiro 2023, a que chamou “Charlie e a fábrica de conteúdos”, o Autor refere uma notícia do Daily Telegraph, em que se diz que “…as alterações foram feitas por uma organização chamada Mentes Inclusivas, que oferece uma gama de “serviços editoriais” e se autodefine como “um colectivo apaixonado pela inclusividade e acessibilidade na literatura infantil”. E refere ainda, com uma boa dose de humor, “…acredito que sim, da mesma maneira que a EDP é um colectivo apaixonado pela electricidade, e qualquer firma de consultores é apaixonada pela consultoria: não por serem vocações, mas por serem fontes de rendimento de promissora longevidade.”
“Palavras originalmente descritivas
Clive S. Lewis
tendem a tornar-se termos de louvor ou crítica.“
Os autores da “nova linguagem” consideram que se devem reescrever os livros antigos para a tornar mais inclusiva e menos violenta. Provavelmente são os mesmos que dia a dia se dedicam a inventar expressões idiotas, nomeadamente para profissões. Exemplos como “técnico interior de manutenção” para empregada de limpeza, ou “agente de ambiente em espaços verdes” para jardineiro, sendo que obviamente se poderia trocar o género, sabendo-se que existem empregados e jardineiras. Mas, na verdade, essa atitude ultrapassa a questão, aparentemente simplista, da linguagem, para se inscrever na patranha neoliberal que pretende “acabar” com os trabalhadores e substituí-los por “colaboradores”, uma espécie de fazedores de coisas para alimentar o sistema que os continua a oprimir e agora os tenta “corrigir” e até estupidificar. Trazer à liça o putativo idioma fictício do governo despótico imaginado por Orwell, no seu “1984”, pode parecer dar importância demasiada a uma possível “novilíngua”. Todavia, os factos estão aí. Em finais de 2021, o executivo de Emanuel Macron rotulava de “islamo-esquerdismo” um amplo sector da academia francesa, falou-se mesmo nessa altura em França, de uma autêntica caça às bruxas.
Ao mesmo tempo, começam a surgir na sociedade ocidental sinais evidentes, que podem ser interpretados como de ignorância, de intolerância, ou mesmo de estupidez crónica. Vêm curiosa e sistematicamente dos EUA, um país que se arvora como sendo uma luz para o mundo e que mantém, no seu interior, as trevas mais negras do seu passado. Uma professora é demitida da sua escola por mostrar aos seus alunos a escultura “David“, de Michelangelo. Se acrescentarmos que se tratava de uma aula sobre arte renascentista, estará eventualmente tudo dito, apenas aproveitando para tal lembrar que, no século XV do calendário juliano, a Igreja Católica Romana considerava a nudez obscena, ordenando que se cobrissem os órgãos genitais das estátuas com folhas de figueira de metal.
Em linguagem provavelmente não-conveniente dir-se-ia que o pénis do David perturba as mentes dos americanos da Florida, aos quais se poderia recomendar a leitura de um poema do Carlos Drummond de Andrade, pelo menos dos primeiros versos “Sem que eu pedisse, fizeste-me a graça / de magnificar o meu membro, / Sem que eu esperasse, ficaste de joelho /em posição devota…”, um atrevimento sadio, apreciado certamente por cidadãos que prezam a sua arte e a sua cultura.
Aquando do “Regresso” ao seu “Admirável Mundo Novo”, o intelectual inglês Aldous Huxley, escreveu que “A sobrevivência da democracia depende da aptidão de grandes maiorias para fazerem escolhas de modo realista à luz de uma informação sólida”. E chamou a atenção, a esse propósito, para “…poderosas forças ocultas, presentes nas profundidades inconscientes de cada espírito humano”, características de ditaduras, que, na sua opinião, censuram ou deformam os factos e apelam, “…não para a razão, não para o interesse próprio esclarecido, mas para a paixão e para o preconceito…”. Sábias palavras, escritas em 1959 e que se transportam facilmente para este novo século, onde parece minguar o pensamento racional.
Fazendo parte da existência humana, a linguagem define e marca a comunicação que estabelecemos uns com os outros, num entorno que é um misto de reflexão filosófica, cultural e de cidadania. O antropólogo britânico Jack Goody afirmou, numa entrevista de 2004, ao historiador de Cambridge Peter Burke, que os livros influenciam a nossa fala e a forma de pensar e de agir. Para Goody a linguagem escrita é assumida como factor de cultura permanente. A linguagem, mesmo a mais “inconveniente” é responsável pelas manifestações que conhecemos, em todas as vertentes do conhecimento humano. Se permitirmos que o conservadorismo, nas suas diversas facetas, domine a acção política e estabeleça limites, os aqui referidos ou outros, estaremos a abrir a porta aos censores e à sua prática perversa, que é a de uma pequena moral burguesa, ou, na sua forma sistematizada, uma verdadeira moral pequeno-burguesa.
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