Alfredo Soares-Ferreira *
A ideia de limpeza, aplicada à política, possui uma conotação particular. Utilizá-la com ou sem comas, pode não ser um preciosismo de linguagem, importa perceber o que o termo (que esconde a ideia) representa na prática. A história recente dá-nos conta de distopias do género, representações de um imaginário opressor, que pretendem, acima de tudo, excluir. A exclusão será o objectivo último, uma espécie de “solução final” do século XXI e tem como alvo todas as minorias, os grupos e etnias que não sejam “puros”, na origem, na cor e na atitude. Mas igualmente no pensamento e nas suas manifestações, nas políticas de cancelamento levadas a cabo pelos zeladores, os modernos inquisidores, bem preparados e formatados para a sua acção.
Despertamos, na manhã de 11 de Março, com uma proposta de “limpeza” do País. Uma organização a quem foi concedido o estatuto de partido político conseguiu eleger quarenta e oito deputados, com uma margem percentual de dezoito pontos, correspondente a um milhão de votantes. Será importante recordar que não foi pacífico o seu reconhecimento no Tribunal Constitucional, entidade a quem competia a dita concessão. Na verdade, o dito grupo parece não aceitar as regras do sistema vigente, que utiliza, distorcendo a Lei e a Constituição da República. Esta proíbe, no seu artigo 8.º (Salvaguarda da ordem constitucional democrática), os “partidos políticos … racistas ou que perfilhem a ideologia fascista.” No entanto, este grupo defende no seu programa, por exemplo: “…intransigentemente a aplicação de pena de prisão perpétua para a criminalidade mais grave e violenta…”, que se “…ilegalize o financiamento por países terceiros de lugares de culto em solo português” e que se “proíba que se erijam mesquitas promovidas pelo Wahabismo, Salafismo…”. Não é possível nenhum respeito perante isto, o que não significa qualquer desrespeito por quem votou “nisto”.
A história é povoada de ícones e ídolos, dotados de um poder simbólico e capazes de promover anseios orientados, entre outros, para a figura do salvador da Pátria
Saber o que significa hoje a ascensão meteórica da extrema-direita na Europa, é uma questão que preocupa os pensadores dos fenómenos sociais e antropológicos e para a qual existem interpretações diversas. Contudo, todas parecem convergir no que tem a ver com a insatisfação generalizada perante as políticas que não privilegiam os cidadãos e as suas necessidades concretas, muito particularmente as classes trabalhadoras, que veem o seu salário degradado e, ao mesmo tempo, constatam a forma desmesurada como aumentam os lucros da banca e das grandes empresas. Essa insatisfação volta-se contra os Partidos que ocupam o Poder, mas não contra o essencial, ou seja, contra o funcionamento da dita “união europeia”, com políticas restritivas ao desenvolvimento, na insistência de regras obtusas incorporadas no sistema da moeda única e em toda a política designada europeísta de apoio declarado a conflitos e guerras, no alinhamento seguidista aos EUA.
Poucos pensadores terão sustentado tão claramente o fenómeno da cultura de massas, como Umberto Eco, um Homem das dissensões e contradições do final do século XX. O seu super-homem, uma espécie de fusão entre natureza, magia e tecnologia, misturada com um senso-comum conservador e, ao mesmo tempo, libertador, é, todavia, incapaz de qualquer manifestação revolucionária e usa, como refere Eco, na sua obra “Apocalípticos e Integrados”, as suas vertiginosas possibilidades operativas para realizar um ideal de absoluta passividade, um mito e um poderoso suporte da cultura de massas. Estávamos em 1964. Hoje, sessenta anos depois, estamos perante uma realidade semelhante, o que parece demonstrar que a história é povoada de ícones e ídolos, dotados de um poder simbólico e capazes de promover anseios orientados, entre outros, para a figura do salvador da Pátria, aquele que se propõe limpar o País.
Qualquer ilusão que possa subsistir, no quadro político do século XXI, marcado pelo ascenso de ideais fascistas, nazis e racistas, esbarra na persistência neoliberal para arrastar esta Europa para a dominação e a subjugação. Um escrito do sociólogo e filósofo alemão Herbert Marcuse, “The Historical Fate of Bourgeois Democracy”, datado do início da década de setenta e publicado pela Revista de Teoria Crítica, parece hoje premonitório sobre o verdadeiro destino histórico da democracia burguesa, utilizando a terminologia do Autor. O texto é uma reacção às eleições de 1972 nos EUA e analisa o desenvolvimento regressivo da democracia burguesa, na transformação de uma sociedade dinâmica para uma estática, de uma sociedade liberal-progressista para uma reaccionária e conservadora. Diz Marcuse que duas hipóteses podem ser colocadas, em termos alternativos, o neofascismo numa escala global ou a transição para o socialismo, afirmando como claramente mais provável a primeira. Ao prevenir para a substituição da asserção “classe trabalhadora” para “povo”, com o risco inerente de colocar no mesmo saco exploradores e oprimidos, um conceito amorfo que parece não ter um contrário, um conjunto de “massas amorfas” que formam a “base humana da democracia americana”, um “prenúncio das suas tendências reaccionárias, conservadoras e até mesmo neofascistas”. Podemos assimilar perfeitamente esta tese à realidade europeia de hoje.
“O que o mundo for amanhã é o esforço de todos nós que o determinará. Há́ que resolver os problemas que estão postos à nossa geração e essa resolução não a poderemos fazer sem que, por um prévio esforço do pensamento, procuremos saber, por uma análise fria e raciocinada, quais são esses problemas, quais as soluções que importa dar-lhes…”, diz-nos, no prefácio da sua obra de 1933, “A Cultura Integral do Indivíduo – Problema Central do Nosso Tempo”, o professor e resistente anti-fascista, Bento de Jesus Caraça.
A “limpeza” do País é a antítese da razão e do pensamento claro.
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