A intenção programática

Alfredo Soares-Ferreira *

Uma das verdadeiras intenções de um programa é a sua clareza. Haverá outras certamente, a objectividade, a coerência, a temporalidade. A definição das metas a atingir e a formulação de medidas de concretização encerram um programa, na sua substância. A palavra pode ser determinante no programa. Porém, quando se reveste da forma mercadoria e acrescenta um valor potencialmente “barato”, poderá inquinar o programa, não apenas na sua forma, mas também no seu conteúdo substantivo. Porque um programa deve, em princípio, justificar a necessidade de uma mudança, tenha ela o sentido que tiver e consubstanciar necessariamente as razões subjacentes.

“Que Fazer?”, Lenine.

Quantas vezes nos questionamos sobre o que devemos fazer, em matérias da vida corrente? Na política, as perguntas e interrogações levantadas serão sempre de outra dimensão. No entanto a grande maioria das questões, nomeadamente as programáticas, passa pela consideração de uma ética política, tantas vezes clamada pela burguesia e poucas vezes levada às últimas consequências. Um dos políticos que escreveu sobre o que fazer, foi o teórico e revolucionário russo Vladimir Ilyich Ulianov, no seu livro de 1901, precisamente com a interrogação “Que Fazer?”. Entendida como a obra fundamental sobre o que é um partido político, amplifica a sua análise à organização e à intrínseca ligação com as bases do Partido. E onde é nítida a intenção programática, manifestada, nomeadamente, na concatenação estreita das palavras de ordem com a táctica política da organização.

O grande Autor, ensaísta e filósofo alemão, Walter Benjamin, introduziu o termo “aura”, a propósito da fotografia que, nos primeiros tempos era a convergência completa entre o objecto e a técnica. Segundo ele, a imagem teria um “halo misterioso”, envolvendo a aura, que entretanto entra em declínio e depois em destruição. No tempo em que escreveria “A obra de arte na era da sua reprodutibilidade técnica”, precisamente em 1936, existia a aura, devido à novidade e ao inesperado. Na sua imensa polivalência, Benjamin aborda nessa obra, do romance ao teatro épico, da fotografia às teorias do fascismo alemão e da poesia à “Melancolia de esquerda”, para além das referências a autores eternos, como Marcel Proust e Bertholt Brecht. Com a queda da aura, há sucessivas tentativas de a restaurar, criando uma aura falsa, passando a fotografia a ser um acontecimento banal, perdendo-se o mistério inicial.

Uma das oportunidades deste século será encurtar a distância entre a intenção programática e a realidade. Será seguramente uma tarefa da Esquerda

Ser pudéssemos transportar, no tempo e na forma, a ideia de Benjamin, diríamos hoje que o Manifesto Comunista de 1848, de Marx e Engels, encarnava uma aura que qualquer programa partidário gostaria poder almejar. Contudo, apesar da aura perdida, como a da fotografia do século XIX, o tratado político do Manifesto é ainda hoje objecto de estudo e reconhecido como obra fundamental. “Tudo o que é sólido se dissolve no ar”, ou a lógica capitalista extensiva, na sua capacidade para reconfigurar as mais diversas formas de organização, é uma das asserções mais utilizada, desde o final do século XIX.

A marcha à ré do século XXI faz lembrar os anos vinte e trinta do século XX, após o ascenso de influência associado ao ímpeto futurista de 1909. A influência do Manifesto Futurista passou pela I Guerra Mundial, entre 1914 e 1918, corporizado por diversas figuras, de onde se destaca, a do autor, o escritor e jornalista Filippo Marinetti. Na verdade, um ideólogo, que se viria a juntar ao movimento fascista italiano, sendo da sua lavra a tese de que a ideologia do partido representava uma extensão natural das ideias futuristas. A similitude parece instalar-se depois dos anos noventa, com o desenvolvimento das plataformas digitais e irrompendo em pleno século XXI, com o enviesamento proto-fascista, nos planos cultural, social, económico e político. A dominação burguesa é hoje em dia catapultada pela subjugação completa ao capital financeiro e todas as esferas da vida social são invadidas pela propaganda, despida de qualquer intenção programática que não seja a do fascismo eterno, de que nos falou o filósofo e linguísta italiano Umberto Eco, dizendo que ele “falava” a novilíngua de Orwell e limitava os instrumentos para um raciocínio complexo e crítico.

Uma das oportunidades deste século será encurtar a distância entre a intenção programática e a realidade. Será seguramente uma tarefa da Esquerda, uma vez que o espectro que hoje assola a Europa é o dos populismos da extrema-direita, que continuarão, com poder reforçado, enquanto não forem encontradas respostas para os problemas que as nossas sociedades enfrentam, como afirmou o sociólogo alemão Wolfgang Streeck, em entrevista à Revista Manifesto, em Maio de 2019. E onde afirmou, de forma clara, a necessidade de a Esquerda ter capacidade ou vontade de organizar o que chama um “contramovimento democrático”, que combata o silêncio sobre as deslocações financeiras causadas por uma “globalização” sem freios.

“Angelus Novus”, de Paul Klee;
Fotografia com Walter Benjamin

Para não andarmos, tal como Proust, continuamente “em busca do tempo perdido”, talvez seja aconselhável voltar aos clássicos e pugnar pela intenção programática mais básica do nosso tempo, que é a do Estado Social, na sua defesa, mas também na sua manutenção e aprofundamento constante. As variações possíveis e admissíveis a esta tese estão associadas à reversão de um processo entrópico, contrariando a outra tese que é corporizada pela ideologia hegemónica colonizadora da doutrina neoliberal.

(Na foto principal, arte sobre imagem de Walter Benjamin, Art.AU)

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Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.

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