Por Alfredo Soares-Ferreira

Saber hoje da importância da palavra pode ser eventualmente considerado como retórica, dada a tremenda desvalorização que a sociedade mediática pós-moderna lhe tributa, preferindo o choque, muito mais eficiente, da provocação. A palavra tem, contudo, um valor acrescido, para quem preza o que a modernidade tem de melhor, ou seja, o património imenso do iluminismo, na afirmação da ciência e da filosofia, centrado na razão como fonte de autoridade e legitimidade e nos ideais da igualdade, liberdade e fraternidade.
O antropólogo britânico Jack Goody sugere que tratemos a palavra, como o início que era o verbo e que significa, na tradição católica, a palavra de Deus, dos profetas e do filho que terá salvado o Mundo. O tratamento que lhe é devido, em oposição, ao chamamento dos bens terrenos e do dinheiro, ou seja, à palavra de Mamon, segundo S. Mateus (6:24). Segundo o profeta, seria impossível servir os dois, ao mesmo tempo. A posição de confronto entre os “dois senhores” poderia hoje eventualmente ser cotejada com a luta de classes, não fora a vocação classista uma constante da própria modernidade.
De qualquer forma, o aforismo confucionista de que uma imagem vale mais que mil palavras, tem sido bastante explorado pela propaganda, que, entretanto, a usa, como artefacto retórico. A validade da palavra, implicará então que se cuide da sua imagem, um tratamento que será tanto ou mais eficaz quanto a credibilidade do sujeito tratador. Se, por exemplo, nos sentirmos autorizados, como diz Mia Couto, a usar as palavras da forma que entendêssemos, seremos levados a concluir, como ele, do direito que nos assiste de inventar palavras para fazer com que digam coisas que nenhuma outra diz.
A densidade da afirmação fútil perturba a palavra e desgasta o seu efeito. Pegar no exemplo conhecido da afirmação “Palavra dada, palavra honrada” pode ser um exercício banal se a não situarmos devidamente no espaço, no tempo e no sujeito. Compare-se com esta outra, atribuída a um manifestante contra a invasão soviética da Checoslováquia de 1968, “Durante dez minutos fui um cidadão”. Facilmente se conclui da depreciação rápida da primeira e da validade permanente da segunda.

A palavra de honra, uma sinédoque, que, como figura de linguagem parece ter perdido algum peso, circunstância a que não será alheia uma certa precaridade nas garantias. Mesmo que não se trate propriamente de uma honra perdida, como a de Katharina Blum, a empregada doméstica criada por Heinrich Böll, que, num pérfido enredo, seria arrastada para uma campanha difamatória e de destruição da sua vida privada. Quando se perde a honra, a palavra fica vazia e sem efeito previsível.
Quem presa a palavra e a sua dignidade não pode senão ensandecer com a banalidade e a vacuidade de algumas que, sem qualquer intuito criativo, acabam por poluir a comunicação. Veja-se o caso de “implementar”, um abuso semântico de “executar”, ou de “perder o foco”, eufemismo estrangeirado para dispersar ou distrair. E ainda da inutilidade perniciosa de combinações de palavras escorreitas, em asserções como “E agora é levantar a cabeça e seguir em frente…”. Fenómenos evidentes de perda de dignidade das palavras, transportam-nos para o “chão de palavras pisadas”, de Ary dos Santos, que era, no poema, a Cidade, na aparente contradição entre “praças de palavras abertas” e “ruas de palavras desertas”.
O contraponto fica aqui assinalado com um maravilhoso ramo de palavras, entre tantos que poderíamos coleccionar. Como a pedir que voltemos a uma qualquer “noite passada”, dizendo “Estavas do outro lado, a tricotar janelas…”. Aqui sorrimos e dizemos, com o Sérgio Godinho, “Ainda bem que voltaste!”.
Entretanto a palavra desce à rua e transforma-se em palavra de ordem. São milhares delas, nas bocas de trabalhadores que lutam por um futuro diferente, para si e para os seus. Com elas também se fazem revoluções, ou transformações sociais determinantes. Se conseguíssemos imaginar uma rua de palavras, encontraríamos aquelas com que nos identificamos e que, ainda hoje, em surdina, por vezes, gritamos. É uma outra imagem da palavra, que sempre nos faz lembrar a liberdade, que Jorge de Sena diria que não haveria de morrer sem lhe conhecer a cor. Imagem a cores, portanto.
De palavras que não existiam, pela ausência de liberdade, falava em 1963, um poema de Manuel Alegre. Na “Trova do Vento que Passa”, perguntava-se “ao vento que passa / notícias do meu país” e depois “o vento cala a desgraça / o vento nada me diz”. Na mesma situação parecem estar hoje os seis jovens que foram sequestrados, agredidos e humilhados na esquadra da PSP em Alfragide, à espera há 22 meses de uma palavra da Provedora de Justiça. Sem palavras.
Sem palavras também uma notícia da Transparência Internacional que, transportando-nos ao Parlamento Europeu, e a propósito da detenção da eurodeputada e vice-presidente Eva Kaili, nos diz que “A ética e a integridade não são verdadeiramente importantes na EU”. Estranha forma de (mal)tratar duas palavras que reportam conceitos que deveriam ser os mais respeitáveis.
As palavras deveriam ter sempre uma qualquer utilidade. Mas às vezes não. Daniel Filipe, poeta cabo-verdiano, da Ilha da Boavista escreveu um dia, num longo poema, onde, a certa altura sobressai, “Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração / e fome de ternura / e souberam entender-se sem palavras inúteis…”.
As palavras transportam-nos ao mundo maravilhoso das utopias. Para que a modernidade nunca enjeite a sua função primeira do pensamento em processo. Para que os espíritos livres possam preencher o vazio imenso da intriga e da propaganda. Devemos então cuidar das palavras. Da palavra. E assim, da sua imagem, que aos olhos do cidadão possa ser construída, protegida e acarinhada.
Cuidar da palavra pode ser um aviso oportuno na quadra que se aproxima, propícia que se diz ser a entendimentos. Será possível, hoje, iluminar o mundo com palavras, construir quiçá uma árvore de palavras, ainda que “decorada” com luzes que por vezes nos ofuscam, tamanha que é a sua luminescência? Se forem palavras, como as de O’Neill “…que nos beijam como se tivessem boca”, poderíamos encontrar nelas, como diz o Poeta, amor e alguma esperança.
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