A honra perdida de um império à deriva

Por Alfredo Soares-Ferreira *

No caso de a nossa natureza ser sempre a de olhar para a história, sobretudo para o passado, como disse há tempos o cineasta Volker Schlöndorff, “…tudo na vida é sempre consequência de alguma coisa que aconteceu antes”, a aprendizagem constante poderá desafiar o poder grotesco da designada cultura de cancelamento, que caracteriza os tempos modernos. O Autor, que levou para a tela o romance “A honra perdida de Katharina Blum”, de 1974, do escritor alemão Heinrich Böll, Nobel de Literatura em 1972, contou uma estória baseada em factos reais, que ilustrava a forma como alguém pode ter a sua vida devassada, através dos efeitos perversos da imprensa sensacionalista.

Os responsáveis do império ocidental, aparentemente desprovidos de responsabilidade, parecem ter perdido a honra, arrastando uma civilização para as profundidades. “Para onde navegas, Europa, se não ofereces percursos de paz, vias inovadoras para acabar com a guerra?…”, perguntou Francisco, o Papa, acrescentando mais uma desafiadora pergunta, “…que rota segues Ocidente?”. Questões mais que pertinentes, que afinal sintetizam a deriva de um império, que pensa ser o centro do mundo, quando não passa de um ponto no universo global e que promove o maior retrocesso civilizacional dos tempos modernos, favorecendo e incentivando guerras e reduzindo os cidadãos à categoria de consumidores.

Seja nos costumes, seja na economia, o poder deste império em declínio parece querer arrastar todos na sua voragem, insistindo na tese maléfica da preservação de uma democracia, a que resta apenas a formalidade de ir a votos e em que o cidadão, pisado e deprimido, não tem nem meios, nem recursos, para poder sequer contestar. É o monstro de Bruxelas, que um dia Hans Magnus Enzensberger classificou como “afável”, avisando que a Europa se encontra sob tutela, um monstro “ávido de poder que avança como um bulldozer imparável” e ainda que, a assim continuar, significa a sua própria ruína.

Para onde navegas, Europa,
se não ofereces percursos de paz,
vias inovadoras
para acabar com a guerra?…”

Francisco, o Papa.

Ao perder a honra, este império à deriva, faz lembrar aquele que o investigador australiano e activista pelos Direitos Humanos, Patrick Wilcken descreveu na sua obra “Império à deriva“, de 2004. Nela se conta a partida da família real portuguesa para o Brasil, em 1808, fugindo às tropas napoleónicas. E onde se constatava o declínio do império português, minado pela corrupção, onde os novos territórios se haviam tornado locais de “despejo de exilados” e onde se caminhava para uma realidade, muito semelhante à de hoje: a decomposição por dentro e o afundamento das ambições imperiais.

Bartolomeu Dias, o verdadeiro descobridor do Brasil.

A questão que se coloca é saber quais as consequências. Quer para a mais que provável decomposição, quer para o fim das ambições imperiais da proclamada união. Na introdução ao seu livro de 2013, “Porque Devemos Sair do Euro”, João Ferreira do Amaral escreveu, “A 10 de Dezembro de 1992, sem qualquer pressão internacional e sem nenhum exército inimigo às portas de Lisboa, a Assembleia da República aprovava o Tratado da União Europeia. Foi a maior capitulação do País desde as cortes de Tomar de Abril de 1581…”. O mesmo terá acontecido noutros países, sem a mínima interferência dos cidadãos, que assistiram entretanto à “desgraça”, tida como uma coisa boa e, pior que isso, inevitável. Um pouco por todo o lado, as tão faladas “regras de convergência” resumem-se hoje numa só, a regra neoliberal da perpetuação da exploração capitalista, traduzida na transferência de rendimentos do trabalho para o capital e nas obscenas margens de lucros da banca e das grandes empresas.

Francisco, um Papa inconveniente, afirmou, sem qualquer filtro, “Na Europa e em geral no Ocidente, assiste-se a uma triste fase descendente na curva demográfica: o progresso parece ser uma questão que diz respeito ao desenvolvimento técnico e ao conforto dos indivíduos, enquanto o futuro pede para se contrariar a queda da natalidade e o declínio da vontade de viver.” É, por um lado, uma tristeza sistemática e, por outro lado, um sinal de falta de sentido perante os grandes avanços tecnológicos que, em lugar de significarem uma melhoria da qualidade de vida das populações, apenas representam os mais desmesurados lucros para as empresas e mais rendas para o capital.

Autor: Bernard Bouton, cartunista francês.

O mesmo Francisco, que conheceu bem o que o seu País sofreu com a conivência dos EUA a todas as ditaduras na América Latina, particularmente o beneplácito que Jimmy Carter deu ao regime de terror de Jorge Videla na sua Argentina, entre 1976 e 1981, sabe como o Ocidente sempre se mostrou fraco e seguidista com o imperialismo americano.

Enquanto assiste ao declínio de uma civilização e de um império à deriva, este Homem parece entretanto perdido na imensa podridão de uma igreja incapaz de reflectir, sequer de dar a cara perante evidências e alimentada por ideais ultrapassados e apoiados por uma “doutrina da fé”, anquilosada e atentatória à inteligência. A censura parece ser a sua arma preferida, com a cumplicidade do Estado, de que é um triste exemplo a forma como foi proibido em Oeiras um cartaz, classificado como “ilegal”.

Enquanto a deriva continuar, não há qualquer esperança em redimir a honra perdida deste Ocidente, que entretanto já perdeu, embora não o saiba, as rédeas do império.

Se, dizia-se, que Roma não pagava a traidores, que pagamento “merecem” os autores do declínio do império? Se os tratarmos como traidores, será ainda possível inverter o processo de aceleração do previsível fim? Se uma sociedade optou pela deterioração inevitável, será possível deter a natural entropia do sistema?

O que parece ser a honra perdida, perante o descalabro, é maldosamente compensado pela ideia (ou crença) de superioridade como justificação para combater o outro. E ainda, pela tentativa angustiada de tentar regenerar o mundo através da moral. Daí resultam práticas perversas, compatíveis com a orientação actual de todas as posições primárias, demagógicas e mistificadoras, afinal a imagem de um império descontrolado.

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Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.

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