A colonização mental

Alfredo Soares-Ferreira *

O sociólogo francês David Muhlmann lançou, em 2021, uma obra designada “Capitalisme Et Colonisation Mentale”, em que introduz a ideia de “colonização mental”, para designar uma espécie de mutação antropológica, que impõe uma intromissão na vida quotidiana e no espaço mental, que afirma estar “colonizado”, na medida em que determina uma vivência de alienação generalizada, um modo de vida subjugado e aparentemente aceite pelo cidadão. Precisou bem, na sua obra, a “invasão” de todo o campo social e até mesmo da intimidade, pela lógica do modo de produção capitalista, que impõe um formato de pensamento baseado na troca e na utilidade, determinando assim como agir, pensar e até mesmo interagir.

O mesmo tema tem sido formulado com designações diversas, embora na mesma linha de pensamento, por autores como György Lukács, Umberto Eco e Noam Chomsky, para ilustrar uma forma de captura das consciências pelo politicamente correcto, que, aceite pela sociedade, acaba por se transmutar em dogma imposto. Exemplos disso são determinadas afirmações, ditas ou escritas, produzidas pelos meios (ditos) de comunicação social, particularmente na apresentação, ou introdução, de notícias, ou peças informativas. Nos últimos dias e no que reporta às situações ocorridas em Israel e na Faixa de Gaza, ouvimos, por exemplo, repetidas vezes as mesmas duas sentenças. Uma delas é “guerra total contra o terror do Hamas” e a outra é “apoio inequívoco e incondicional ao Estado de Israel”. A esta, poder-se-ia acrescentar a da incrível Ursula, de uma lucidez notável, “O ataque do Hamas é um acto de guerra”.

Se juntarmos a isto a dramatização que tem a ver com a insistência no uso sistemático de emoções ou suposições, teremos o caldo conveniente para a “instalação” de uma realidade inerente à situação colonial, presente em todas as expressões materiais e simbólicas da sociedade, como a classificou na sua obra “Os Condenados da Terra”, o filósofo político caribenho Frantz Fanon. Ontem, como hoje, os condenados são os milhões de seres humanos que se encontraram no turbilhão das guerras de saque de recursos, ocupação e outras intervenções “humanitárias e de defesa das populações” das grandes potências ocidentais. E condenados parecem ser ainda, neste particular, aqueles que são usados inadmissivelmente como reféns.

“Apenas é digno da liberdade quem a sabe conquistar”

Charles Baudelaire

Poder-se-ia contrapor a utilização constante e permanente do terror contra os palestinianos, forçados a viver diariamente na Faixa de Gaza, um território que é hoje considerado com a maior prisão a céu aberto do mundo, um racismo indigno dos tempos modernos, bem como num sistemático desprezo absoluto dos direitos dos cidadãos palestinianos. E dizer bem claro quem são os autores e responsáveis, desde logo o governo de extrema-direita de Netanyahu, apadrinhado pelos EUA, a quem a NATO, a EU e todo o Ocidente prestam vassalagem, de forma perfeitamente acrítica e irracional. E que obedecem à divisa primária “só estamos bem, quando estamos em guerra com alguém”.

Poder-se-ia contrapor ainda o legítimo direito, consagrado pela ONU, de os povos colonizados se levantarem em armas, para se libertarem do jugo colonial. E que, com base nessa premissa, o povo palestiniano se revolte legitimamente contra o Estado de Israel, que lhe impõe um regime brutal de apartheid e contra ele comete autênticos crimes contra a humanidade, reconhecidos aliás por uma boa parte da comunidade internacional.

Presidente de Israel Yitzhak Herzog,
em reunião com a presidente
da Comissão Europeia, Ursula
von der Leyen, em Bruxelas.
Foto: Haim Zach.

Mas, como a outra parte é o império EUA/NATO/UE e, como é essa parte que conta, porque é quem dita a lei de colonização mental que determina como se deve pensar, falar e agir, estará tudo ao contrário. Mesmo que se evoque uma Resolução das Nações Unidas de 2016, (aprovada por 14 votos, apenas com a abstenção dos EUA), que condenou Israel, exigindo que cessasse imediatamente a instalação de colunatos judaicos no território palestino, incluindo em Jerusalém Oriental.

Todavia, quando se acende a luz de pânico, tudo muda num repente. Luz que é acesa por aqueles que detêm o Poder unilateral no mundo inteiro e que se consideram como “nação indispensável”, uma “invenção” de Madeleine Albright, a secretária de Estado de Bill Clinton, em 1997. Em boa verdade não terá inventado coisa alguma, apenas se limitou a expressar daquela forma uma ideia antiga, que perpassa por todas as administrações norte-americanas, após a Guerra Fria, da suposta superioridade do País que está sistematicamente contra o Direito Internacional, mas que o utiliza para distorcer todas as realidades que considera adversas. Aquela superioridade manifesta-se, em todos os planos, civis ou militares e, com particular destaque, no plano moral, onde reside grande parte da colonização mental do século XXI. A tal ponto que hoje poderemos considerar que a dita “União” Europeia não passa de (mais) uma colónia dos EUA, que estes controlam a seu bel-prazer.

Nestes tempos difíceis, parece ter-se acentuado um certo messianismo ocidental, uma classificação que tem a autoria do filósofo italiano Domenico Losurdo e que se manifesta, segundo o autor, num reforço evidente de um certo estatuto colonial da humanidade, em que predominam algumas formas do passado esclavagista.

Se nos lembrarmos do que Baudelaire afirmava, no século XIX, sobre a liberdade, talvez consigamos tirar uma lição para este fenómeno de colonização mental. Como ele bem dizia, apenas é digno da liberdade quem a sabe conquistar. Estará aqui colocado, a nível individual e colectivo, o maior desafio do século: a libertação do jugo colonial, particularmente, no plano mental.

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Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.

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