A adulteração do espaço de debate

Alfredo Soares-Ferreira *

No significado comum do termo “debate”, encontramos, conversa, argumentação, contestação e discussão, como sinónimo, ou simples parecença. A possibilidade de extensão da significância ressalta da utilização do termo e da sua aplicabilidade prática. Saber então se existe, ou não, debate, depende das partes em questão, os que debatem e os outros. Os “moderadores” servem supostamente para promover a condução e facilitação da discussão dos temas ou ideias, estabelecendo algumas regras, sujeitas ao andamento do debate. Saber se estas considerações são pacíficas, é o mesmo que saber se a “intromissão” no espaço de debate de actores externos é determinante para a qualidade da acção.

O sociólogo norte-americano Michael Schudson, fala-nos, numa entrevista de 2008, do interesse jornalístico e da tendência dos jornalistas para canalizar a maioria do tempo de antena para os candidatos que parecem ter boas possibilidades de ganhar.

“Os portugueses querem saber”,
“Sou eu que faço as perguntas”.

Na sequência desta premissa, os “debates” surgem, em períodos eleitorais, como uma instituição. Saber se o modelo é, ou não, democrático, pode parecer à primeira vista, um preciosismo, na medida em que a “instituição debate” é necessária para o esclarecimento dos cidadãos. Ou se, pelo contrário, representa uma intromissão na esfera individual, na medida em que a pessoa é invadida por frases-chaves da parangona mediática, a invenção modernista que tende a considerar o cidadão como um mero consumidor de informação, onde a controvérsia levanta poucas dúvidas e o cidadão é “naturalmente” triturado e manipulado. A importância suprema em discutir e debater tudo, é substituída pelo apelo à querela inútil e ao espectáculo da briga e, acima de tudo, do desvio deliberado da atenção, em que o cidadão embarca, por arrastamento e pela força do mediatismo e do espectáculo.

Há termos e expressões, usados pelo moderador que revelam desrespeito e arrogância, nos exemplos, “tem que me responder, ainda não me respondeuos portugueses querem saber”, “sou eu que faço as perguntas”. Para além da presunção irritante de saber o que os cidadãos querem ou precisam, poderia ainda questionar-se, quem outorgou a quem, o direito de representar o que os portugueses querem. Na verdade, o poder que supostamente é conferido ao moderador deriva de uma interpretação enviesada. A apropriação da linguagem neoliberal, a sua transposição no debate, determina um formato nada propício à discussão e ao debate propiamente dito, uma vez que são as televisões que impõem regras, como a que determina que os debates só devem envolver líderes com representação na AR. Assim se pode aquilatar da influência determinante das empresas na política, justificada pela pretensa implicação da informação na esfera social. Não é apenas a vergonhosa posição da televisão estatal, de submissão ao privado. É a manifestação peremptória da impossibilidade prática de pluralismo, que advém do manifesto apoio e consolidação do fortalecimento do discurso hegemónico da narrativa neoliberal, bem como da normalização que têm promovido e que conduz ao branqueamento da extrema-direita e dos seus representantes. É ainda a “estranheza” de as interrupções constantes e permanentes serem sempre feitas aos candidatos da Esquerda, que, em grande parte dos casos, nem conseguem desenvolver um raciocínio. É finalmente o escândalo da permissão a um candidato nazi-fascista, racista e xenófobo de mentir, insultar e ameaçar.

Seguem, na mesma linha, os inevitáveis comentadores. Oriundos da Direita, na maioria dos casos, constituem-se como uma espécie de “juízes sociais”, promovendo formas de avaliação que vão do “exame” com notas, ao “julgamento”. Seria um exercício interessante conhecer a sua “folha de serviço” e as suas verdadeiras motivações. A uns e outros, moderadores e comentadores, é manifestamente difícil pedir-lhes que se comportem de forma digna e imparcial. No caso de ainda lhes restar um mínimo de decência, estariam em condições de promoverem o necessário exercício de desmontar propostas enganadoras, falaciosas, ou simplesmente, incumpríveis.

Uma das múltiplas questões a colocar acerca da utilidade prática dos “debates” é a razão por que são omitidos temas cruciais da actualidade, como por exemplo, a cultura, a comunicação social, a administração do território. E ainda a discussão sobre a Europa, que implica a abordagem da dita “União Europeia”, da moeda única, do papel do Banco Central Europeu e do Parlamento Europeu. E também as questões ligadas à Defesa, que determinam as posições sobre a NATO e sobre o exigido aumento do orçamento para a “defesa”.

O resultado é evidentemente a indução do voto, “patrocinado” pelo medo.

Os sinais das sondagens, controladas pelos grupos empresariais, para condicionar e manipular o voto cidadão, estão modelados nos “debates”, quase sempre inquinados e manifestando uma estupidificação crescente. O que verdadeiramente interessa é a saber o que vai fazer o PS, caso vença sem maioria absoluta. O mesmo para a AD. E se, nos dois casos, vão “deixar passar” o programa e o orçamento do outro. E, no caso da AD, se vai ter, ou solicitar, o apoio da extrema-direita. O resultado é evidentemente a indução do voto, “patrocinado” pelo medo. Uma questão interessante, que desvia de certa forma o centro das atenções é saber como é que linguagem gestual trata a confusão e a barafunda. Como é que o silêncio se comporta face à manipulação, como lida com o espectáculo mediático, como a força da palavra se pode esbater.

O cientista político italiano Mauro Fotia dá conta, na sua obra de 1973, “Ideologias e Elites Contemporâneas”, de como se tem conseguido, através dos mitos, grotescas formas de mimetismo que cristalizam a maneira de pensar e o comportamento dos indivíduos em função de modelos que funcionam como “agentes mágicos” da manipulação ideológica das massas. Que melhor imagem poderíamos imaginar para os agentes mediáticos modernos, que comandam os “debates”?

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Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.

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