Alfredo Soares-Ferreira (*)
No final de cada ano, ou no início do que se inicia, impõe a tradição, comummente aceite, de fazer balanços e perspectivas. Do que se passou e do que se prevê possa vir a acontecer. Muitas vezes, esses balanços são eivados de uma visão pessoal. Seja na forma de sentimento, ou mesmo de vontade de intervenção, tendemos a prever aquilo que gostaríamos se realizasse, ou fosse uma realidade. Nada que possa prejudicar a análise, afinal faz parte dela a nossa interpretação e extrapolação.
Arrastados por uma qualquer onda negativa, em parte resultante da ainda persistente pandemia, não a podendo esquecer, antes lembrar para prevenir, seremos eventualmente a formular, para além do que desejamos, o que definitivamente não queremos para o ano que agora começa. Neste contexto, haverá, pelo menos, três ideias que poderemos pôr de lado, para que se não perca, nem a esperança, nem a perspectiva de um futuro próximo, ou com um futuro próximo mais animador. Afastaremos então a tão propalada resiliência, como forma de “voltar atrás”. De outra forma, também o negacionismo, enquanto negação da realidade histórica, científica e civilizacional. E finalmente, a ilusão, que pode, de certa forma, dificultar a visão do real e turvar as consciências.
Vistas segundo o ângulo do “não fazem falta”, qualquer uma delas pode, e deve, encontrar uma alternativa devidamente capacitadora. E até mobilizadora, até porque se aproxima mais um acto eleitoral e dele esperamos uma elevada participação, muito embora sejam conhecidas as limitações impostas, uma vez mais, pela pandemia.
Resistência em vez de Resiliência
A ideia, já possivelmente gasta de tanto uso incomum, quer invocar um povo que aguenta, muito mais que a capacidade de voltar rapidamente ao seu habitual estado de saúde ou de espírito. O conceito de resiliência, com origem na física, foi integrado e explorado pela psicologia, que o procura definir como uma capacidade individual para enfrentar dificuldades. Muito longe de negar a dita resiliência, o que aqui se refuta é a assimilação daquela com a subserviência, muito característica de certas atitudes sociais ou políticas actuais, que tentam manter no mesmo estado pessoas e comunidades, porque serão, segundo elas, “resilientes”. Aceitam tudo, enfim, para mal das suas próprias fraquezas. Então diríamos que resistir sim e com consciência completa de cada situação, não só não aceitando, como ainda armazenando a capacidade de luta necessária para intervir, nos planos social e político.
Conhecimento contra a atitude negacionista
Algumas, ainda que poucas, manifestações, como a do Verão passado, em Odivelas, mesmo em frente de um centro de vacinação, reflectem posições de um reduzidíssimo número de indivíduos, que pensam saber tudo e muito mais que a comunidade científica internacional. Normalmente associados a grupos de extrema-direita, tentam desesperadamente anular as medidas que comunidades e governos tomam diariamente para proteger os cidadãos. São um vírus, mais um, que teremos de combater, com todos os meios ao nosso alcance. É, uma vez mais, o Conhecimento, a sua difusão e massificação, a arma adequada.
Utopia sim, ilusão não
A sociedade avança com utopias. E só com elas é possível afirmar que existem sempre alternativas ao que está instituído. A utopia representa a esperança no potencial humano para a transformação. Serve para nos orientar na longa caminhada da vida.
Bem diferente é a ilusão, que se apresenta ao espírito como real, sendo na verdade apenas uma falsidade. Uma das formas de iludir é muito utilizada em alguma comunicação social, que apresenta as suas próprias versões dos factos, ditos mais relevantes, que afinal mais não passam dos acontecimentos que eles mesmos seleccionaram e com os quais tentaram influenciar a opinião dos cidadãos.
Existem ilusões, muitas e de imensas formas e feitios. O professor da Universidade de Colúmbia Howard French fala de uma, que tem particularmente a ver com a história. Afirma ele que a ascensão da Europa não se deveu a uma superioridade inata, como é propagandeado pelo ocidente, mas sim aos múltiplos encontros com africanos, que teriam ocasionado a expansão para outros continentes e às necessárias transformações sociais e civilizacionais. A ilusão de que a Europa pode ser a resposta para todos os problemas até seria normal, caso as políticas da chamada “união europeia” fossem alinhadas por objectivos ligados, quer a uma economia de justiça social, quer à cooperação internacional, com equilíbrio e respeito pelos mais carenciados. Como o que prevalece é um neoliberalismo impiedoso e não-respeitador do estado social, a maior ilusão para 2022 é pensar que este possa ser um caminho. Podemos estar desapontados, iludidos é que não. Bem a propósito, Saramago disse que “o mau não é ter uma ilusão, o mau é iludir-se.”
Enfrentamos então o novo ano a “…pegar o mundo/pelos cornos da desgraça”, como diria o Poeta, se entre nós estivesse agora. E possivelmente, contando a evocá-lo, para “…fazermos da tristeza/Graça”i.Que viva então 2022!
(*) Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação
i Extractos do Poema “Tourada”, José Carlos Ary dos Santos, 1973.
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