
Alfredo Soares-Ferreira *
O título poderá eventualmente sugerir, nesta altura do ano, uma mensagem errónea. A verdade é que se costumam sugerir pausas ou intervalos para as festas canónicas. Porém, não existe interregno algum nas questões sociais, por mais que se doure a pílula, uma forma perifrástica para suavizar o que de suave tem muito pouco. O eufemismo pode até ser patético, quando estamos mesmo a ver o pior dos cenários e nos querem fazer crer que tudo está bem. Enquanto estamos ocupados com questões laterais, deixamos porventura passar o essencial. É o que acontece nos tempos que correm, em que o movimento uniformemente acelerado que é imposto à política, determina a preocupação generalizada com os factos e com o tacticismo do momento, ao invés de privilegiar dinâmicas e tendências de longo prazo.
Ao contrário da onda dos balanços, seria aconselhável pensar a razão por que certas coisas acontecem e a forma como se desenvolvem as rupturas. Um outro aspecto, não despiciendo, poderia ser a procura de razões pelas quais se vai desvalorizando sucessivamente a maior parte das coisas que se fazem em benefício das pessoas, resistindo ao sintoma do propósito maldizente, a que se atrela sistematicamente a extrema-direita.
As pessoas vão perdendo referências democráticas e se vão dedicando a destruir tudo o que resta da sociedade “antiga”
O filósofo e historiador italiano Antonio Gramsci defendeu a tese do “interregno” como um eventual período entre o mundo velho mórbido e o novo que está a nascer. A tese surge numa fase conturbada da sociedade italiana, sujeita à ditadura fascista que haveria de prender e torturar Gramsci durante onze anos, que ele aproveitou para escrever os famosos “Cadernos do Cárcere”, em número de vinte e nove, entre 1926 e 1937. Na mesma linha vai o professor de Direito António Avelãs Nunes, autor da obra “O Mundo Velho Está a Morrer. O Novo Ainda Não Nasceu. Este é o Tempo dos Monstros”, dedicada a “tentar compreender a guerra na Ucrânia”. Se este é, como afirma o autor, um tempo de monstros será eventualmente também um tempo de interregno, na perspectiva mínima de um tempo de reflexão. Por outro lado, um tempo de preparação para reunir forças, ou reunir tropas, para uma ofensiva necessária para afastar os monstros. O que conduz necessariamente à criação de uma consciência revolucionária, reflexiva e construtora da mediação, na acepção que lhe deu o psicólogo russo Lev Vigotski.
Um tempo em que, por razões que vão sendo conhecidas e debatidas, as pessoas vão perdendo referências democráticas e se vão dedicando a destruir tudo o que resta da sociedade “antiga”, levando atrás não a legítima percepção do protesto pelo que não está bem, mas no sentido reaccionário da recuperação do idealismo burguês que proporcionou os piores momentos do século XX, muito particularmente o nazismo e o fascismo, que devem ser citados por necessidade imperiosa de lembrar a História recente.

Há hoje muitos e variados protagonistas de episódios de interregnos forçados. Pela guerra e pelos seus mandantes, intérpretes que dominam um tempo que pode ser de monstros. A situação na Faixa de Gaza e também na Cisjordânia é, por força da ocupação brutal de Israel, uma amostra perfeita do “tempo dos monstros”. Porque é de um extermínio em massa que se trata e os monstros, como em todas as realidades, têm nome e, ao mesmo tempo que clamam os “valores democráticos” da “sociedade ocidental”, matam ou ajudam a matar, o que vai dar ao mesmo. E se as palavras não são poupadas para descrever esta realidade, devemo-lo ao desenvolvimento da chamada filosofia da linguagem, iniciada, no século XVIII pelo linguista alemão Friedrich von Humboldt e continuada por Noam Chomsky. Fica assim evidente a importância de enquadrar a linguagem como um sistema que questiona a forma como se faz a aquisição, a produção e a compreensão da linguagem verbal, para determinar como um número infinito de frases pode ser criado usando um número finito de palavras.
Entretanto o professor francês Christophe Clavé chama a atenção para a pauperização da linguagem que, na sua opinião, produz um golpe fatal à precisão e variedade da expressão e determina um pensamento dirigido quase sempre para o presente, incapaz de ser projectado no tempo, afinal, mais um interregno que parece barrar o futuro.

E ainda o sociólogo polaco Zygmunt Bauman, quando afirma que estamos entre a incerteza e a esperança e que sustenta também, na sua obra de 2016, “Babel. Entre a Incerteza e a Esperança”, os designados “tempos de interregno”, entre o que não é mais e o que não é ainda.
Se o interregno significasse simplesmente uma, ou várias, pausas, para pensar e reflectir, nenhum mal viria ao mundo. Quando ele representa a “incerteza” de Bauman, estamos eventualmente no terreno movediço que a pós-modernidade parece ter instituído. Sabendo, como Engels defendeu, que nada ocorre na natureza de forma isolada e que, cada fenómeno afecta outro e é, por seu turno, influenciado por este, resta-nos a demanda da acção determinante como imperativo de vida.
Nota: Este é também tempo de interregno para mim, na escrita das crónicas. Volto no mês de Fevereiro do ano 2024.
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