Morabeza: unhas e gestos delicados

Vanda Azuaga *

Chegada de Portugal – e depois de três semanas a usar sapatilhas e botas – foi um alívio voltar a poder andar todo o dia de pés ao léu! As sandálias exigem uns pés bem arranjados, nada de calcanhares cascudos ou unhas por pintar. Sendo assim, logo na segunda-feira fui ao salão. Não fica longe de onde moro, num primeiro andar discreto. Trata-se da mãe, da irmã, das filhas e do filho. Isso mesmo, empresa familiar em que cada um tem mais ou menos definidas as suas tarefas. A mãe faz massagens e depilação, os filhos tratam de unhas e limpeza de pele, a tia faz um pouco de tudo para além de ser a que faz as contas e marcações. São muito simpáticas e os preços são acessíveis. O filho é um rapaz muito bonito, absolutamente feminino, mas em corpo de homem. Chama-se Gio, tem uns vinte anos. Quando o conheci usava uma cabeleira aos caracóis e uma fita. Ontem tinha tranças loiras que lhe caiam pelas costas até abaixo do rabo. Não se maquilha, mas todo o seu jeito é delicado, comoventemente delicado. Foi ele quem me arranjou as mãos, enquanto a irmã me tratava dos pés. Vai meter pé na água, perguntou ela. Agora já sei – sim, quero fazer a pedicure completa! Mas a primeira vez, pareceu-me uma pergunta estranha.

Gio lima, vagarosamente, com gestos de violinista, um vai e vem sensual. Com todo o vagar e tempo do mundo.

Gio fala pouco. Não saberá muito português. Ou será timidez. Pega-me na mão e com o alicate vai suavemente, aproximando muito o rosto, cortando as cutículas que teimo em roer. Põe tanta dedicação nesse trabalho que fico a olhá-lo, admirando-lhe a beleza e a gentileza. Demora eternidades com o mesmo dedo e quando o provoco dizendo que metade do trabalho está feito porque à dentada já tirei uns bifes, sorri discretamente e abana a cabeça. Lembro-me da minha Lili, em Portugal e do desembaraço com que atende as clientes e maneja o alicate e as limas. Gio lima, vagarosamente, com gestos de violinista, um vai e vem sensual. Com todo o vagar e tempo do mundo. E outra lima, pousada na bancada cor-de-rosa, serve para polir e um pincelzinho para limpar a poeira. Levanta-se e vai buscar uma série de frasquinhos, a uma prateleira colorida. Nem pergunto o que é: deduzo que me pincela as cutículas ásperas com um óleo qualquer, mas com a mesma dedicação com que imagino Leonardo da Vinci pintou a Gioconda. Em pequenas e precisas pinceladas. Gentis. Como se fosse este o trabalho mais interessante do mundo. E lá vem outro frasquinho que agita no ar, com gestos delicados, antes de o abrir e me pincelar de novo as unhas. A base e finalmente o verniz. Incomoda-me esta atitude dele. Se por um lado me sinto uma rainha, por outro acho um exagero de tempo e dedicação a umas simples mãos que vão lavar loiça, esfregar roupa e… unhas que vão voltar a ser roídas, seguramente.

O meu lado racional pensa em produtividade. Com esta lentidão, poucos clientes pode atender por dia. Mas será isso o importante? Ou será mais importante o cuidado, o amor que pomos no que fazemos?

Não sei. Mas fico encantada com o Gio e penso quanta dor não sentirá por ser diferente. Será que assim, pondo tanto amor no que faz, acalma a dor de ter um corpo errado?

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Vanda Azuaga
* Vanda Azuaga é mulher do norte, gosta de escrever e de mexer na terra. Adora colher tangerinas da árvore, tanques de pedra, manhãs de nevoeiro e cheiro a maresia.

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