Medidas à medida?

Em toda a parte o teu papel é admirar mas, (caso infeliz)
nunca acertas numa admiração feliz…” (1915)
A Cena do Ódio”, José de Almada Negreiros

A apresentação das designadas “Medidas Extraordinárias” do programa de governo e respectivo orçamento, apresentadas no passado 11 de Abril, constituem matéria suficiente para o debate global. A circunstância específica de este Governo dispor de uma maioria absoluta, não implica, ou pelo menos não deveria implicar, a necessária negociação. Até para que o Executivo se possa sentir eventualmente mais confortável para aplicar o seu projecto de governação.

As 18 medidas

As medidas pretendem, no entender do XXIII Governo constitucional, conter o aumento dos preços energéticos e agroalimentares. A propósito, a Ministra da Presidência afirmou que “Estas medidas procuram dar uma resposta focada e dirigida ao problema em causa”. As medidas são designadas “de emergência” englobam 4 eixos, “Contenção dos preços da energia”, “Apoios à produção”, “Apoios às famílias” e “Aceleração da transição energética”. No primeiro eixo, o Executivo decreta a redução do ISP equivalente à redução do IVA para 13% e anuncia “…uma redução de 690M€/mês, nos custos da energia em Portugal para empresas e famílias, por via da limitação dos lucros inesperados e extraordinários das empresas geradoras de electricidade”, bem como “a suspensão do aumento da taxa de carbono até Junho e reavaliação trimestral até ao final do ano sem reposição integral”. O segundo eixo, prevê uma subvenção para apoiar o aumento dos custos com gás das empresas intensivas em energia, que abrange mais de 3000 empresas, um desconto de 30 cêntimos por litro nos combustíveis para o sector social. No terceiro eixo, estão previstos alargamentos, para as famílias titulares de prestações sociais mínimas, como o dos apoios ao preço do cabaz alimentar (60€)” e à aquisição de botija de gás (10€). Finalmente, no quarto eixo estão englobados que a redução da taxa mínima do IVA dos equipamentos eléctricos, quer a “agilização do licenciamento de painéis solares”, a “simplificação dos procedimentos relativos à descarbonização da indústria” e um “reforço de 46 M€ para instalação de painéis fotovoltaicos em 2022 e 2023 (agroindústria, exploração agrícola, aproveitamentos hidroagrícolas)”.

As medidas são mesmo à medida?

A primeira observação tem a ver com este exemplo comezinho: o Governo considera que tem que esperar a autorização de Bruxelas para a descida do IVA para 13%, nos combustíveis. É alias por isso mesmo, que é reduzido o ISP, com redução equivalente. O significado desta medida é, uma vez mais, a obediência e dependência completa à UE, uma das idiossincrasias deste e de todos os outros governos das últimas décadas. A segunda tem a ver com a ideia, tornada, entretanto uma verdadeira obsessão, de que é necessário reduzir a dívida, antes e acima de tudo o resto.

Com base nestas duas premissas (podiam acrescer outras mais), é possível entender a medida das medidas, pelo menos no seu alcance imediato. Mesmo sabendo que muito pouco, ou nada mesmo, daquilo que se propõe vai resolver qualquer dos problemas estruturais de uma população que tem, por exemplo, um problema demográfico entre mãos, agora e nas próximas décadas e que vai implicar um enorme aumento em despesas com a saúde e cuidado de idosos. Mesmo sabendo que os salários em Portugal são de uma confrangedora miséria e que cada vez mais se afastam da média europeia. E com os preços dos bens essenciais sempre a subir.

Se as medidas fossem realmente à medida, então teriam de prever um necessário e urgente aumento de salários. Porque afinal, são estes que estão a pagar a factura da inflação, aqui e no resto da Europa, leia-se agora “europa civilizada”, na terminologia pós invasão da Ucrânia pela Rússia. Mais, para que as medidas fossem mesmo à medida, deviam implicar uma política audaciosa de fixação imediata de preços máximos, dos combustíveis aos bens alimentares de primeira necessidade. Mas claro que a modernidade liberal e neo-liberal dita que tal nunca será possível, porque, acima de tudo, o mercado tem que funcionar. O Governo, este Governo, que é o vigésimo terceiro da República, segue todos estes princípios, como qualquer outro que se preze, da zona euro. É pois, por isso mesmo, que com tanta medida avulsa, nunca haverá uma só medida à medida, ou seja, que dê um pontapé na submissão e na dependência, para combater de vez a desigualdade que este País regista, de dia para dia, na cauda de uma Europa injusta e desigual. Na verdade, ao longo do ano passado (2021), os salários reais registaram uma “queda significativa” (termo utilizado pelo Financial Times) na zona euro, depois de uma década em que estiveram praticamente estagnados. A inflação, prevista desde o final de 2021, afecta os salários e o poder de compra dos cidadãos, com a subida do índice harmonizado de preços do consumidor, devido sobretudo aos preços da energia, situação que já vinha a verificar-se desde aquela altura do ano passado e que naturalmente se agravou depois de 24 de Fevereiro.

A organização não-governamental OXFAM, afirma, em comunicação de 13 de Abril, que “a inflação faz disparar pobreza à escala mundial” e estima que mais de 65 milhões de pessoas passaram a correr risco de pobreza extrema após o início da guerra. E defende um significativo aumento de impostos sobre mais ricos e empresas que registaram ganhos extraordinários. Ora aqui está mais um excelente conselho que o Governo da República devia seguir. Sabemos de antemão que tal não irá acontecer, porque a última coisa de que este governo se lembraria, era ferir os interesses do grande capital.

Cuidar dos cidadãos, o mínimo que se exige

A próxima legislatura constitui uma oportunidade única para transformar Portugal e aproximar o padrão de vida dos portugueses da média europeia. Para alcançarmos este desiderato, temos de utilizar de forma criteriosa e rigorosa os recursos financeiros que a União Europeia irá colocar à nossa disposição“, é o que consta do programa deste Governo. E basta esta afirmação para perceber que o Executivo faz depender a melhoria, que há muito tarda, das condições de vida dos cidadãos, da aplicação dos ditos fundos. Ou seja, a predisposição dos nossos governantes é ser mais criterioso, na aplicação dos fundos que nos conferem. Confessemos que é mesmo muito pouco. E se confrontarmos essa “vontade”, com as outras quatro que estão no “programa de emergência”, a saber, “proteger as famílias”, “proteger as empresas, “garantir a coesão social” e “garantir o crescimento económico”, então é que detectamos o profundo fosse que é cavado entre a “vontade” e a realidade. Porque existe um princípio que não deve ser esquecido, o de que a economia deve supor um sistema de produção e de criação de riqueza que possa ser distribuída e ser a base de bem-estar social e colectivo. Onde está então esse suporte? Existem porventura medidas que o possam, no mínimo, garantir? A resposta é inequívoca e tremendamente negativa. Infelizmente. Mais, aceitar passivamente que os salários desçam em vez de subirem, como seria expectável, é permitir a perpetuação de uma situação de desigualdade e, em alguns casos, de aprofundamento da miséria social.

Cuidar dos cidadãos, particularmente dos mais carenciados, significaria aumentar os salários, na devida proporção da inflação, porque é essa inflação que vai minando os salários e o poder de compra de quem vive do seu trabalho. Significaria actualizar os escalões do IRS à taxa da inflação. Significaria reforçar os serviços públicos, saúde, educação, habitação e justiça, com a necessária obrigação de implementar políticas públicas à medida das necessidades do País. Significaria ainda o reconhecimento ao direito universal à energia, único garante possível de uma transição energética justa (a tal transição que anda sempre na boca dos responsáveis, que na verdade o são muito pouco), a saber, aquela que coloca a justiça social no centro da política climática e energética.

A tão simples e evidente noção de cuidar dos cidadãos, que, em política, qualquer governo que se diz preocupado com o bem-estar social, deveria respeitar, é, mais uma vez, enterrada, no tacticismo mais praticista. A emergência deixa de o ser, para passar a ser, única e simplesmente, a aceitação tácita de tudo o que se diz e se defende. Isto é mesmo uma contradição insanável.

Na verdade, a afirmação transcrita do programa do Governo, acaba por ter uma única leitura possível: é, de facto mais uma oportunidade perdida.

About the Author

Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.