Mapear a Realidade

Por Alfredo Soares-Ferreira

Um termo que é um jargão matemático é utilizado comumente por algumas “artes performativas”, ligadas ao fenómeno do empreendedorismo para induzir o que chamam conhecimento da realidade, mas que, contudo, não passa de uma mistificação do real. Mapear significa, segundo os dicionários correntes, construir ou confeccionar um mapa. O respectivo mapeamento será então o resultado da representação gráfica das diversas partes de um todo, ou da simples definição do lugar, utilizando um mapa. Passando, ou generalizando a ideia, para o campo social, podemos associar a função de mapeamento a uma espécie de ferramenta destinada a registar oportunidades de uma determinada região, local ou cidade. E que pode e deve ser utilizada, para as matérias concernentes, pelas autoridades públicas ou movimentos sociais, no sentido de ajudar a encontrar soluções para certos problemas, identificados como alvo de intervenção.

Importa, acima de tudo, marcar um território, provavelmente livre da propaganda moderna, de cariz neoliberal e caracterizada por um empobrecimento mental e cultural. Poderia ser um território de resistência, na perspectiva de poder eventualmente sustentar uma atitude filosófica sobre a vida em comunidade, tão necessária nos dias de hoje, onde o simples esforço para pensar parece ser um empreendimento gigantesco. Na verdade, o universo que nos rodeia está hoje infestado por personagens menores que, de certa forma, ensombram a realidade e impedem um mapeamento correcto e cientificamente sustentado dos territórios onde os cidadãos se movem. Dir-se-ia existir um impedimento consciente, que, privilegiando emoções descontroladas, obstrói as visões claras da realidade. A medida exacta em que tal impedimento influencia a vida colectiva e o usufruto, por exemplo, da cultura e do lazer, está na falta de tempo de que nos queixamos e que mais não é que um artifício em que nos vemos envolvidos e nos impede o acesso aos referidos bens.

Cada um, a seu modo e na sua área específica, dois cientistas de reputado gabarito internacional, recentemente falecidos, contribuíram para a ingrata tarefa de mapear a realidade. O activista norte-americano Mike Davis, geógrafo, historiador e economista político, falecido a 25 de Outubro, afirmou que escrevia para que as pessoas que leiam os seus livros, não precisem de doses de esperança ou finais felizes, mas que leiam para saber contra o que lutar, e lutem mesmo quando o combate pode parecer sem qualquer esperança. Esta poderá ser uma mensagem inteligente e inteligível para a realidade do século XXI, atafulhada que parece estar em doses sucessivas de propaganda, oriunda de uma forma geral, daqueles sectores que não desejam a mudança e se lhe opõem a todo o custo. Um outro cidadão falecido a 9 de Outubro, o antropólogo, sociólogo e filósofo Bruno Latour, lançaria em 2013 um processo de investigação e pesquisa sobre os modos de existência, que tomaria a forma de livro. A obra “Jamais Fomos Modernos” serve para interrogar as conexões entre a natureza e a cultura e descreve uma visão irrealista da ciência, que, no entender do Autor, se vocacionaria como o árbitro da realidade e da verdade, levando-nos a julgar todos os valores por um único padrão. Estes dois Homens marcaram as suas gerações, e deram um significativo contributo ao pensamento crítico moderno, no final do século XX e no início deste. E à eventualidade de transformações sociais, para as quais se torna necessário um real mapeamento, necessário e urgente.

Um exemplo contraditório de mapeamento transporta-nos hoje para uma realidade virtual. É o caso de um evento que está a realizar-se em Lisboa, e que vem ocupando espaço na capital, desde 2009. Nas palavras do jurista Fernando Teixeira, a dita Web Summit é uma “vendedora de ilusões”, não passando de uma espécie de “centro de turismo tecnológico”, uma classificação mais que oportuna, uma vez que “…não deixa de ser turismo porque não produz nada.” Este evento é aliás um bom exemplo do vazio completo da propaganda neoliberal, alimentado ilusões a milhares de “empreendedores” e que só consegue realizar-se com o fortíssimo apoio de dinheiros públicos, que deveriam estar a ser canalizados para aquilo que o País precisa. Para ter uma pequena ideia da falácia deste “empreendimento”, utilizando dados da consultora Informa D&E, do ano 2019, cerca de uma em cada três startups portuguesas (as tais empresas que nascem pela acção dos ditos “empreendedores”) encerra ao fim de um ano. Misturando uma linguagem infantilizada com expressões bizarras, como “fábrica de unicórnios”, este não deixa de ser um exemplo de como a doxa neoliberal actua e tenta “prender” os cidadãos a conceitos enganosos e, de certa forma, perigosos.

Os estudos académicos dos mais variados observatórios deveriam ser devidamente integrados nos processos de tomada de decisão. Poderiam ser um contributo decisivo para o mapeamento da realidade. Brecht dizia, a propósito, “Apenas quando somos instruídos pela realidade é que podemos mudá-la“, uma lição e uma metodologia bastante convenientes. Meio mundo vive hoje uma realidade paralela, transmitida em directo, um espectáculo, por vezes horrendo, uma mistificação absoluta, aceitando toda a informação, de uma forma pacífica e acrítica. E aceitando conclusões fáceis e simplistas sobre questões complexas. Daí à inacção completa vai um pequeno passo, o sistema existe e existirá sempre, mesmo que alguma coisa mude e fique tudo absolutamente na mesma. O esforço para mapear a realidade vale a pena, para que o cidadão se situe no espaço que lhe pertence e possa actuar sobre ele, para o transformar.

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Alfredo Soares-Ferreira
Engenheiro e Professor aposentado. Consultor e Perito-Avaliador de Projectos nacionais e internacionais para o Desenvolvimento e Cooperação.

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